São Paulo, sábado, 22 de junho de 1996
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Cinema é celebrado por suas cidades

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Poucos livros motivados pela celebração do centenário do cinema parecem tão dignos de transcender a efeméride quanto o francês "Les Villes-Lumière", de Michel Braudeau. Há uma organicidade no projeto raras vezes presente em textos de origem jornalística.
"Les Villes-Lumière" é uma volta ao mundo em dezoito crônicas, publicadas por Braudeau no diário parisiense "Le Monde" em julho e agosto do ano passado.
O ambíguo título já adianta a proposta: "Villes-Lumière" pode ser traduzido tanto por "cidades-luz", estendendo a outros endereços do globo o epíteto mais célebre de Paris, sede da primeira projeção comercial de filmes em dezembro de 1895, como por "cidades-Lumière", isto é, cidades marcadas pelo invento maior dos irmãos Lumière, o cinematográfo.
Foi assim, como uma espécie de repórter internacional do centenário, que Braudeau visitou dezoito capitais mundiais do cinema. Circular foi seu trajeto, partindo naturalmente da Lyon da primeira filmagem dos Lumière e chegando à Paris da projeção inaugural.
Entre uma e outra, Nova York, Hollywood, Cidade do México, Bombaim (Índia), Hong Kong e Taipei (Formosa), Xangai (China), Cairo (Egito), Ouagadougou (Burkina Faso, África), Túnis (Tunísia), Lisboa, Roma, Londres, Berlim, Praga, Moscou e Alhures, isto é, um sítio virtual onde se desenvolve hoje o cinema do futuro.
Francofilia
A seleção de paradas é de maneira geral justa, ainda que a francofilia force a mão aqui (Túnis) e ali (Praga). Mais difícil parece justificar a exclusão de toda a Oceania, principalmente frente a ascendente produção de países como Austrália e Nova Zelândia, e a ausência da América do Sul (o Brasil é rapidamente citado como bem-sucedido exportador de telenovelas).
Feitas as ressalvas, há muito que descobrir nos instântaneos do cinema atual apresentados por Braudeau. Suas crônicas seguem uma estrutura-padrão que supera o caráter didático para flertar, com sucesso, com o literário.
Impressões walter-benjaminianas das cidades abrem os textos, intermeando-se um pouco da história do cinema local. Braudeau logo ancora seu balanço em depoimentos de próceres dos cinemas nacionais, como os diretores Stephen Frears e Chen Kaige.
Não demora a estabelecer-se um interessante jogo de polaridades. Três são os pares opostos principais: Hollywood versus o mundo, o cinema "popular" versus o cinema "de arte" ou "de autor" e o cinema versus a TV (ou, desenvolvendo um pouco mais como quer Naum Kleiman, Lumière versus Edison, isto é, espetáculo coletivo versus fruição individual).
Nouri Bouzid
Essas oposições seriam parte fundamental da explicação para a crise generalizada do cinema como testemunhada por Braudeau.
Há, claro, exceções, tanto para o diagnóstico maior quanto para as dicotomias acima destacadas. 95% do mercado de cinema na Índia ainda é dominado por produções próprias. Filmes de acento realista de autores como Ferid Boughedir e Nouri Bouzid são os recordistas de bilheteria na Tunísia. Paris não pára de abrir novas salas.
São triunfos pontuais que emprestam aqui e ali uma cor menos sombria ao texto. O tom geral não consegue escapar da nostalgia. Na Cidade do México ou no Cairo, a década de 40 é lembrada como o período áureo da produção nacional, com o reinado dos melodramas, no primeiro caso, e dos musicais, no segundo.
Megaestúdios
Megaestúdios como a Cinecittá em Roma, ou Babelsberg perto de Berlim ou mesmo os da Universal em Los Angeles, hoje no máximo parcialmente ativos, transformaram-se em museus mastodônticos da própria glória pretérita.
Mesmo quando trata do futuro, Braudeau não aposenta o travo pessimista. Não perde a chance de lembrar o potencial duplo sentido do neologismo "Siliwood", que combina a capital da microinformática (Silicon Valley) com a do cinema (Hollywood). De ouvido, frisa, não há muito diferença entre "Siliwood" e "Sillywood" -"silly" de "tolo" em inglês.
Para Braudeau, no cinema de amanhã, marcado por "atores eletrônicos" e relações virtuais, nós mesmos, espectadores, seremos talvez "angustiados clonês de robôs" frente a um "filme que imita completamente a realidade". Durante um bom período, para ele, ver filmes continuará sendo experiência coletiva, como provaria a forte concorrência pelas salas parisienses. "Há, assim, um futuro, pois o dinheiro raramente tem sentimento".
É pena que a nostalgia tenha contaminado até sua última palavra.

Livro: Les Villes-Lumière (Le Monde-Éditions, 156 págs.)
Autor: Michel Braudeau
Quanto: 85 francos
Onde: Livraria Francesa (Rua Barão de Itapetininga, 275, Centro, São Paulo, fone 011/231 4555)

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