São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 1996
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Coma, não

HORACIO LAFER PIVA

Esse Ricardo Semler é um exagerado. Apesar de levantar vez por outra questões que mereçam reflexão, tempera-as com uma carga de sarcasmo que o faz escorregar, em especial quando prefere olhar pelo retrovisor em vez de mirar, no pára-brisa, o panorama à sua frente.
Pela leitura do artigo nesta Folha fica a impressão de que o autor tropeça num tom saudosista, insinuando ser melhor o tempo em que um telefonema ao ministro de plantão resolvia qualquer problema, não compreendendo o momento atual, quando deixamos um regime fechado para uma sociedade democrática, que emerge na representação política e sindical com uma lógica de pulverização, na qual não há mais lugar para conspirações de gabinete, das quais Semler parece sentir falta...
Estamos todos mudando rapidamente, e que bom que isso aconteça. O Brasil finalmente consolida sua democracia, fruto de um longo trabalho de construção política. As repercussões, assim, são evidentes em diversas entidades da sociedade civil, agora obrigadas a repensar seu papel. Isso não se faz sem mobilização, que, obrigatoriamente, passa por entidades como esta Fiesp que, se estivesse em coma, não mereceria sequer atenção.
A análise, por isso, está centrada numa perspectiva incorreta, deixando de lado o papel de transformação por que passam as entidades patronais, cuja missão neste momento é a de justamente promover o casamento das contradições, a construção da ponte entre o arcaico e o moderno. O que era a verdade de antigamente não é, necessariamente, a atual.
A caravana empresarial que esteve em Brasília foi criada exatamente pelo desejo de passar de uma posição reativa para uma ação pró-ativa. Com uma linha bem definida, ao contrário de levar reivindicações de caráter corporativista, teve o propósito de mostrar que, sem o desenvolvimento da indústria, o Brasil ficará privado de uma de suas principais vocações, num momento em que poucos países do mundo, com exceção talvez da China e da Índia, têm condições tão favoráveis de crescimento. E a indústria de São Paulo tem, justamente, procurado a Fiesp para discutir esse capitalismo contemporâneo no qual as palavras de ordem são desenvolvimento da tecnologia, capital humano e escala global.
O poder da indústria, portanto, está no vigor de sua cultura empreendedora. E na capacidade de, entendendo as mudanças, colaborar com sua transição. E é isso que se está fazendo, não somente na Fiesp como também no Iedi, no PNBE e em muitas outras instituições, com variações apenas de forma e intensidade.
A Fiesp, na atual gestão, de cuja diretoria participo, tem colocado com muita clareza que nossas dificuldades se devem em boa parte à política econômica do governo. É preciso reconhecer, contudo, que uma outra parcela é de nossa responsabilidade, reflexo da existência de vitais transformações na estrutura de demanda de bens, na produção, nas relações de trabalho e na forma de organização das empresas.
Ao focar sua atenção na pirâmide, que nem bela é, Semler esquece que grande parcela de nossa força está no interior do Estado, cujo vigor permite às suas empresas ser sempre as últimas a entrar em crise e as primeiras a dela sair. No retrato dos industriais, cabem os grandes empresários influentes, mas são indispensáveis os pequenos e médios, que representam 98% do PIB, assim como os talentosos executivos que na verdade tocam as empresas. Quanto aos Ermírio de Moraes, Villares, Setúbal e outros, não se deixa de encontrá-los nos conselhos que fazem a vida da entidade, e muito menos dispensa-se sua competente opinião.
O monopólio da crítica à estrutura sindical atual não pertence ao articulista. Grande parte dos atuais eleitores votou por reformas, como a que há dois anos foi feita nos estatutos, aproximando a sede das bases, descentralizando o poder e obrigando à renovação de 1/3 dos dirigentes a cada mandato, evitando assim a perpetuidade no mando, tão comum em outras entidades congêneres. No limite, a sociedade do futuro é mesmo uma sociedade de serviços. Entretanto é esta indústria de hoje a que alavanca todos os outros setores e que quer, sim, ser representada. Com conceito e pragmatismo, é certo, mas com rosto e endereço.
Como estamos conscientes de que não há mais escapatória da ação disciplinadora do mercado, abriu-se espaço para discussões fundamentais que o atual presidente Moreira Ferreira tem procurado estimular e que passam, por exemplo, pelo risco da desindustrialização e da desnacionalização provocada por uma política econômica perversa e pela globalização, que privilegia o fluxo de grandes capitais.
Veja que essa gente dinâmica está participando do desafio de mudança, incluindo, é claro, o jovem e unânime José Mindlin. Lamenta a seletividade criada pela combinação de uma abertura desastrada com câmbio valorizado e juros irracionais, mas nem por isso joga a toalha. O que não quer é, sem apresentar alternativas, desmontar um foro de discussão legitimado pelos associados e um Sesi e Senai que, formando anualmente cerca de 1,2 milhão de alunos, habilita a mão-de-obra qualificada e multifuncional que um novo ambiente demanda.
Tudo é uma questão de tom. Não restam dúvidas de que a Fiesp, como um organismo vivo, tem muito a ser aperfeiçoada. Mas seria muito simples cortar o nó. Difícil é desatá-lo, sem desprezar um ativo acumulado durante décadas. Se o coração bate lento, bate forte e compassado. Bateria melhor se contasse com o talento de mais empresários como Semler e tantos outros que eu, pessoalmente, gostaria de ver na "roda". Agora, estado de coma, não, no máximo uma gripe, cuja receita já vem sendo aviada.

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