São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A vontade do rei

JOSÉ EDUARDO DUTRA

Há muito as pesquisas vêm, invariavelmente, constatando o baixo prestígio dos políticos perante a opinião pública. Certamente uma das causas desse repúdio da população a seus representantes reside na notável capacidade de os candidatos, uma vez eleitos, adequarem seus discursos de palanque ao chamado realismo da política. O presidente Fernando Henrique Cardoso tem dado demonstrações de não fugir à regra.
Isso se constata quando se compara seu passado de reverência a princípios democráticos e a atual prática autoritária na condução de governo. O uso abusivo de medidas provisórias com força de lei como método cotidiano de implementação das diretrizes governamentais é a prova cabal do menosprezo para com o Poder Legislativo, a quem compete, obviamente, na ordem natural das coisas, legislar. O Congresso Nacional dedica-se às tertúlias, enquanto o Poder Executivo dispõe, como bem entende, sobre o que é relevante, ou irrelevante, em matéria legislativa.
O presidente Fernando Henrique que hoje se farta como legislador, embora não mais faça parte do Congresso Nacional, é o mesmo que, como senador, propôs, em 1989, um projeto de resolução fixando a competência do Congresso para julgar se há ou não urgência e relevância em cada medida provisória adotada pelo presidente da República. É o mesmo senador que, em 1991, discursava conclamando seus pares a converter em lei complementar, com brevidade, um projeto do então deputado e hoje seu ministro da Justiça, Nelson Jobim, que regulamenta o uso de medidas provisórias pelo Executivo.
Pois bem. Uma vez no poder, o bravo democrata de então tudo faz para que o projeto de seu ministro da Justiça não seja apreciado, apesar de encontrar-se pronto para votação, no Senado, desde março de 1991.
A situação é simplesmente aberrante. A prerrogativa de editar medidas provisórias deveria ser excepcional, mas, desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, já foram editadas ou reeditadas 690 MPs. Esse dado evidencia que o verdadeiro poder de legislar encontra-se no terceiro andar do Palácio do Planalto. E não vale dizer que apenas 42 são de lavra exclusiva deste governo, sendo as demais meras reedições da gestão Itamar Franco.
Em primeiro lugar porque, desde a assunção de Fernando Henrique ao posto de ministro da Fazenda, em maio de 1993, dezenas de medidas foram editadas por orientação do núcleo decisório que ainda hoje cerca o presidente. Em segundo lugar, porque os técnicos legislativos de plantão no Executivo, por certo movidos pelo modismo da "austeridade", descobriram a vantagem de fundir vários assuntos em um mesmo texto de medida provisória...
O PT admite que o prazo para exame das medidas provisórias possa ser dilatado para 60 dias, mas não concorda com a possibilidade de sua reedição. Afinal, não se pode inverter as atribuições dos Poderes: se, excepcionalmente, o Poder Executivo legisla, ao fazê-lo deve assumir o ônus de ser capaz de mobilizar sua base de sustentação para, enquanto maioria, ratificar os atos de sua ação legiferante anômala o mais rápido possível. Nem se diga que o fim da reedição de MPs seria o início da ingovernabilidade. Ora, nos EUA o presidente nem sequer possui a prerrogativa de iniciativa das leis e, nem por isso, a maior potência do mundo caiu, algum dia, no desgoverno.
Se não é concebível a troca de papéis, por outro lado não se pode deixar de responsabilizar o Congresso Nacional por sua desídia na regulamentação do uso de medidas provisórias. E depois ainda há quem se queixe de comentários "maledicentes" desse jornalista ou daquele cineasta. A omissão do Congresso nessa matéria permite que Fernando Henrique possa fazer as vezes de Guilherme 2º, o último imperador da Alemanha, que não se furtava a dizer: "Seja a vontade do rei a lei suprema".

Texto Anterior: Coma, não
Próximo Texto: Arquivo do Estado; Morte de PC; Segurança aparente; Reportagem tendenciosa; Conselho de Educação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.