São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 1996
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O elogio do Real

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Travelled backwards,/ the road reveals/ its hidden fork;/ a retroactive wound/ flares briefly/ at the disclosure." Ricardo Sternberg ("Erasmus in The Kitchen", 1990)

Aquele meu amigo, jornalista econômico e "arauto da modernidade", vive me dizendo: "Você não dá crédito a nada, não tem olhos para o que há de positivo na ação do governo. As suas críticas seriam mais convincentes se não fossem tão sistemáticas."
Pode ser. A verdade é que o governo às vezes acerta. Acerta sim, leitor incrédulo.
Como não estamos acostumados a isso, demoramos a identificar e admitir os acertos. Desaprendemos até a linguagem para elogiá-los.
O aniversário de dois anos do Plano Real é uma ocasião apropriada para exercitá-la. Vamos retroceder a dois ou três anos atrás. Às vezes um "flashback" é indispensável para fazer justiça ao presente.
Como diz o poeta citado em epígrafe: "Percorrida de trás para diante,/ a estrada revela/ a sua bifurcação oculta;/ uma ferida retroativa/ acende brevemente/ com a revelação."
Até 1994, a inflação brasileira parecia invencível, indomável. A impressão dominante era que já havíamos tentado de tudo, todos os modelos ortodoxos, heterodoxos ou ecléticos de estabilização. A aguda instabilidade monetária parecia um destino.
Com todos os problemas que tem, o Plano Real alterou por completo a perspectiva. É cedo para cantar vitória, mas não há dúvida de que, nos últimos dois anos, os resultados em matéria de diminuição da inflação têm sido melhores do que geralmente se esperava.
Se conseguir completar a estabilização monetária, a um custo social tolerável, a equipe comandada por Pedro Malan entrará para a história econômica do país. Os seus inimigos políticos e acadêmicos ficarão por aí, rosnando impotentes pelas esquinas.
É evidente que o caminho a percorrer ainda é longo e acidentado. São muitos os obstáculos a superar para consolidar o Real e torná-lo compatível com o crescimento sustentado, a geração de empregos e a justiça social.
Não se deve esquecer que muitos desses obstáculos foram engendrados pela política econômica recente. Os próprios dados oficiais revelam que o Real está longe de ter saído da zona de perigo. No período janeiro-abril deste ano, o déficit público consolidado, no conceito operacional, chegou a 3,65% do PIB, mais que o dobro do registrado em igual período do ano passado.
A dívida pública federal em títulos aumentou nada menos que 120% nos 12 meses terminados em maio último, e corresponde agora a mais de duas vezes e meia o valor das decantadas reservas internacionais no Banco Central (BC). Isso reflete não só o déficit primário do governo federal e o efeito das elevadas taxas de juros sobre as suas contas, mas também fatores como o socorro às finanças dos Estados e a emissão de dívida para financiar a assistência ao sistema financeiro público e privado. Nos 12 meses até maio de 96, o Proer e outras formas de auxílio do BC a instituições financeiras produziram impacto líquido de nada menos que R$ 16,4 bilhões.
Nem vou voltar a discorrer sobre os problemas provocados pela política cambial. Basta lembrar que os preços médios ao consumidor (índice da FGV), medidos em dólares, aumentaram nada menos que 68% entre junho de 94 e maio de 96, com consequências graves para a competitividade internacional da economia e sua capacidade de gerar empregos.
Quanto tempo um plano de estabilização pode sobreviver com problemas e distorções desse tipo? Ninguém sabe. Isso depende de fatores imponderáveis, como a disponibilidade de financiamento internacional, o nível das taxas de juro no mercado financeiro externo, a velocidade com que o governo conseguirá corrigir as inconsistências da sua política econômica etc.
A ferida ficou para trás na bifurcação da estrada que estamos percorrendo, mas ainda não está inteiramente cicatrizada. E ao tentar curar a ferida da inflação, o governo abriu outras.
De qualquer maneira, a menos que o governo se acomode e que a economia venha a sofrer choques portentosos, o Plano Real tem chance de se consolidar e de afastar de vez o espectro da inflação alta. Isso não é tudo, mas é importante para um país que há tão pouco tempo parecia condenado à instabilidade monetária.
O leitor incrédulo vai achar que estou aqui fazendo o elogio da loucura, a exemplo de Erasmo de Roterdã. Talvez. O tempo dirá.

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