São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Entre o dr. Pangloss e o bucaneiro

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Nestes dois anos de Plano Real a situação econômica pode ser resumida no seguinte bordão: a inflação vai bem, o país vai mal...
O "pecado original" do câmbio sobrevalorizado e da abertura comercial descontrolada desdobrou-se em vários pecados capitais: déficit em transações correntes do balanço de pagamentos, juros escorchantes, déficit público gigantesco, inadimplência generalizada, crise agrícola e desindustrialização, todos destruidores e limitantes do crescimento global futuro. Finalmente chegaram as três pragas contemporâneas: desemprego estrutural, crise bancária e explosão do endividamento público nas três órbitas do governo.
A avaliação do estado do Plano Real dentro do próprio governo oscilou até recentemente entre três posições: um realismo cético, mas discreto, dos que se opunham desde a origem ao binômio câmbio sobrevalorizado-juros altos; o otimismo oficial dos discípulos do dr. Pangloss, para quem tudo estava no melhor dos mundos (inclusive as metas sociais!); e finalmente o neodarwinismo tardio assumido pela principal figura da tróica econômica, que se considera autor do Real.
Os autores intelectuais da reforma monetária propriamente dita já saíram do governo há muito tempo, e vários outros abandonaram o barco, mas o tripé da equipe econômica só se desequilibrou em maio. Deslocaram finalmente o ministro "realista", depois de várias confusões políticas na base de sustentação do governo, movidas tanto pelos conflitos econômicos das "classes produtoras" quanto por projetos eleitorais concorrentes.
O mofino mês de maio terminou, em termos de retórica, com discussão acalorada entre os "novos economistas" e seus mestres do MIT (a famosa universidade norte-americana). Em termos financeiros ocorreu uma nova explosão da dívida pública mobiliária do governo federal: R$ 13 bilhões no mês passado e a entrada no "estaleiro" do Banco Central de mais um dos grandes bancos privados do país, que sozinho custou mais R$ 6 bilhões ao Proer. Uma tentativa de greve geral foi promovida por todas as centrais de trabalhadores, pouco convencidos da visão propagandeada pelo governo de que tudo vai bem, e lutando pelas teses básicas da sobrevivência.
Junho vai chegando ao fim e o segundo aniversário do plano vai ser celebrado sob a égide do maior encilhamento financeiro público e privado que o país já viveu desde o começo da República. O desmantelamento de milhares de pequenas e médias empresas, a quebra de grandes grupos econômicos, desnacionalizações aceleradas e privatizações que, em vez de diminuírem, aumentam o valor das dívidas presentes, indicam choques crescentes de destruição global. De "criativo" mesmo temos o aumento do desemprego e a "flexibilização" do mercado de trabalho que são considerados indicadores de eficiência!
O governo abandona finalmente a retórica das reformas constitucionais -que apontou durante mais de um ano como salvação do Plano Real- e parte para a guerra defensiva: um novo miniciclo de consumo durável é anunciado pelo presidente como precursor de um crescimento de 6% no final de 1996.
Alguns assessores remanescentes do "realismo" corrigem o primeiro mandatário alertando a opinião pública de que se trata de uma empolgação eleitoral, continuando os limites toleráveis de crescimento do PIB em 4% em 1997.
Só em 1998, segundo projeções "secretas" do Bacen (publicadas pelo jornalista Celso Pinto nesta Folha em 23/6/96), o governo poderá se dar ao luxo de afrouxar a restrição do balanço de pagamentos, torrar reservas e voltar a crescer os tais 6% para jogar, numa cartada decisiva, o destino eleitoral do presidente, que, animado com a reeleição, tende a antecipar as cifras e as datas.
As projeções do Bacen são muito interessantes. Convergência de índices inflacionários de custo de vida e de bens internacionais (até agora completamente divergentes) para uma taxa de inflação de 3% em 1998. Obtida como? Afinal, parece não ser necessária âncora fiscal nenhuma, já que as projeções do superávit fiscal primário são declinantes. Viva a velha e boa "âncora cambial": mais sobrevalorizações ao longo de 1996 e 1997 apoiadas num aumento de reservas que deverá manter o dólar em pouco mais de R$ 1,00.
Os ex-empresários nacionais convertidos em importadores ou rentistas agradecem e apressam-se em aumentar "o investimento direto estrangeiro" evitando a "cunha fiscal" e a produção deficitária. Como a inflação deve continuar caindo, a taxa de juros nominal também, o déficit nominal do setor público acompanharia a queda.
Já as projeções do déficit operacional, apesar de modestas, são mirabolantes, dadas as tendências das taxas de juros básicas em dólar (que se mantêm elevadíssimas) e o montante e ritmo de crescimento da dívida mobiliária federal em 1996, que deve ultrapassar facilmente os R$ 200 bilhões ao final do ano.
Afinal, os banqueiros internacionais parecem ter razão na sua avaliação do "risco Brasil". Os juros em dólar que o Brasil pratica, e continuará praticando, a julgar pelas projeções do Bacen, são dos mais altos do mundo, semelhantes aos da Rússia. É por isso que, segundo suas avaliações, idênticas às do Banco Garantia e da FGV do Rio (todos evidentemente insuspeitos de ser de oposição), a trajetória do Brasil continua sendo de alto risco.
Frente a tantos sinais agoureiros, a visão panglossiana não dá mais conta do recado e foi preciso convocar o principal arauto da "âncora cambial" que se converte, com visível gosto, em verdadeiro bucaneiro.
Em recente entrevista ao "JB" (23/6/96), o jovem e combativo economista, segundo ele mesmo, principal parteiro da situação que aí está, iça a bandeira negra na nau do Real e parte para o ataque: "O mercado de dólares não é diferente do mercado de bananas (!)"; "a sopa acabou" (para quem?); "terminou a anestesia, agora a cirurgia será feita a frio; quem não é eficiente não deve sobreviver"! Se for preciso (e ele é a favor), privatizam-se a Petrobrás e o Banco do Brasil (!).
Coitado do Bacen e do Tesouro (devidamente quebrados), que ainda não deglutiram a dívida agrícola, os ativos e passivos podres dos bancos privados falidos e a "capitalização" recente do Banco do Brasil, sem falar do Banespa, dos Estados e dos grandes municípios igualmente quebrados! Não tem importância. Afinal, será implantado o modelo de "Estado Mínimo". Só não se sabe quem será o dono dele.
Talvez o modelo ideal seja o "reino dos mosquitos" que os bucaneiros do Caribe implantaram na Nicarágua há mais de um século. Ou, quem sabe, o "capitalismo das máfias" da atual República Russa lhes pareça mais flexível e global?
A história do Real está mal contada: a cobra morde o rabo, e R$ 1,00 volta a valer, ao fim de dois anos, o mesmo que valia no começo -US$ 1,00. E quanto vale US$ 1,00? Ah, isso é outra história!
Os 5 milhões de miseráveis agradecem o "real" de cada dia que, segundo recente pesquisa, os tirou da miséria e guardam o troco para as próximas eleições... Talvez as "bananas" e não o Real, o dólar ou o frango venham a ser a nova "moeda" eleitoral.

Texto Anterior: Crescimento
Próximo Texto: Para Kandir, será 'bico' crescer 4% em 97
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.