São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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Um liberador do pensamento

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Isaiah Berlin é um dos grandes pensadores liberais de nosso tempo. Isso não significa que seja neoliberal: esse historiador das idéias fala de política e não de economia. Não propõe políticas de governo, e certamente consideraria irrealizáveis muitas teses neoliberais. É menos conhecido no Brasil do que merece, embora estejam traduzidos alguns livros seus. Daí a utilidade que poderia ter essa longa entrevista que Ramin Jahanbegloo fez com ele, em 1988.
Infelizmente, porém, o livro fica aquém do que poderia ou deveria ser. Um diálogo com um dos pensadores significativos de nossa época acaba reduzindo a um rol de opiniões, sem maior fundamentação. Que diferença de uma entrevista com Foucault ou Deleuze, que sempre surpreendem: aqui, tudo roça o banal. Exemplo disso é a passagem em que Berlin manifesta seu juízo -muito negativo- sobre Hannah Arendt.
O fato é curioso. Berlin e Arendt têm em comum, não só o fato de serem judeus, mas o de criticarem as doutrinas deterministas da vida social (entre elas, o marxismo). Tudo o que ocorre em sociedade, pensam eles, tem causas várias; a previsão é duvidosa, neste campo; olhando-se para o futuro, e passando-se da ciência social para a ética ou a política, o pluralismo é superior a qualquer autoritarismo.
E, no entanto, Berlin não tem respeito por Arendt. Por quê? Não o diz. Depois de uma série de ataques, vem um só argumento: é que Arendt errou, ao dizer que na Antiguidade os gregos desdenhavam o trabalho e os judeus o valorizavam. Na verdade, explica Berlin, dos gregos só Aristóteles e Platão desprezaram o trabalho -que sempre foi visto, pelos judeus, como maldição.
Ora, essa crítica,se é acurada, não basta para aniquilar a reputação de Arendt. O problema é que logo depois a entrevista muda de rumo! Tudo passa a vôo de pássaro. Esse o defeito do livro: não serve nem sequer de introdução ao pensamento de Berlin.
A primeira grande tese de Berlin -que nesse ponto se acerca de Arendt e daqueles, como Lefort, que criticaram o marxismo -é a defesa do pluralismo. Em Berlin, isso implica criticar o monismo, ou qualquer doutrina que reduza a pluralidade do mundo a uma só causa, fator ou ideal. Sem ser um relativista, ele nega qualquer valor absoluto, como os que Leo Strauss procurou restaurar na filosofia política, em nosso século, pondo-se à escuta dos antigos.
Daí, também, que Berlin faça uma leitura especialmente rica de Maquiavel. Longe de ser um pensador amoral, Maquiavel rompeu apenas com a ética cristã e mostrou que poderia haver uma ética "pagã", e da "virt—", aquela que deveria ser seguida pelo príncipe. Ao distinguir duas vidas, a cristã e a pagã, Maquiavel foi, portanto, dualista, e abriu caminho para o pluralismo.
Uma segunda tese, talvez a mais conhecida de Berlin, consiste na diferença entre a liberdade positiva e a negativa. Aqui ele retoma uma distinção do pensador franco-suíço Benjamin Constant, na sua conferência "A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos" (traduzida entre nós na revista "Filosofia Política", nº 2, L&PM). Os gregos, diz Constant, acentuavam a liberdade coletiva, que é a de decidir na praça sobre qualquer assunto, mas com isso eliminavam a liberdade individual, tipicamente moderna, que consiste em não estar forçado a seguir o que o Estado manda.
São essas duas liberdades que Berlin chama de positiva e negativa -só que considera ambas importantes em nossa sociedade. A liberdade positiva é liberdade "para"; indaga de que modo podemos empolgar o poder público para exercer uma política. Já a liberdade negativa é liberdade "de", no sentido do inglês "from", como quando dizemos que estamos livres da repressão ou dos regulamentos." É fácil ver que a primeira atrai mais a esquerda, a segunda mais o empreendedor e o capital.
Berlin reconhece a importância da primeira liberdade, mas, por assim dizer, prefere a segunda. Mal dirigida, a liberdade positiva gerou mais tiranias (o stalinismo) que a liberdade negativa (o capitalismo selvagem). Aliás, talvez seja por isso que Berlin afirme que a preocupação essencial da filosofia política não é com o poder, mas com a finalidade da vida. Porque o poder pode ser discutido empírica e cientificamente. Mas há filosofia quando temos a questão dos valores e do que excede a abordagem experimental ou técnica.
E para isso Berlin recorre à história das idéias. Numa imagem que celebrizou, serve-se do poeta grego Arquíloco para dizer que "a raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma grande coisa". Há pensadores, e seres humanos, que como o porco-espinho relacionam todas as coisas a uma única visão central, sistemáticos que são. Outros, como a raposa, perseguem vários fins, até mesmo contraditórios, entre os quais a conexão é frouxa. Platão, Hegel, Dostoiévski e Nietzsche são porcos-espinhos. Montaigne, Shakespeare e Balzac são raposas.
Não chega a haver opção decisiva por um dos dois perfis. Sua função é explicativa -embora desponte certa simpatia pela raposa, menos por uma astúcia que por seu não-dogmatismo. Porque, afinal, o que Berlin quer é provocar a pensar. É este o interesse de seu liberalismo, que tem mais a ver com a liberdade de pensamento que com a de empreendimento, mais com o intelecto que com o capital.

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