São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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O olhar insondável

ANTONIO TABUCCHI

Suspenso entre a magia de um falar incomum e uma paisagem remota, este ardoroso conto que de imediato poderíamos confundir como o relato de uma infância dramática, nos parece, quando fechamos a última página e compreendemos o frágil e poderoso segredo que prendia o pequeno Miguilim, a metáfora de algo que não sabemos decifrar. Como nos outros livros de Guimarães Rosa, este também apresenta um tom mozartiano, executado pela flauta mágica de um narrador pouco usual. Poderíamos dizer, usando as próprias palavras de Guimarães Rosa que "às vezes, quase sempre, um livro é maior do que a gente".
Ouvido nos acordes do "Corpo de Baile", fantástica sinfonia em sete partes, da qual provavelmente era a sonata mais forte, "Miguilim" contribuía com sua máscara de criança atemporal para a grandeza de uma pantomina que elegia o sertão de Minas Gerais metáfora do mundo. Lido isoladamente, extraído de seu grandioso contexto, na sua narrativa perfeita, esta pérola da metáfora universal deve seu poder de subjugamento e seu ser "maior do que a gente" às interrogações sobre seus significados que abrem para as específicas metáforas: os olhos de um menino, um par de óculos, o real visível.
Nos melhores contos de Guimarães Rosa a metáfora muitas vezes está ligada à ambiguidade. É polivalente e misteriosa, não exemplar: provoca inquietação e conserva uma valorização que não pode ser atribuída, à margem (ou além) da formulação especulativa. Algo que lembra o pensamento selvagem, ligado ao mistério de ser, algo de obscuro e germinal, de primordial e insondável. Por isso a escolha da suspensão da existência -que é o sentido do conto "A Terceira Margem do Rio", que Luciana Stegagno Picchio leu como o grande conto da Culpa- ou mesmo "Grande Sertão: Veredas" -lugar geométrico que lembra a esfera de Pascal-, que Gianfranco Contini definiu como não-localizável, assim como as "ilhas sem lugar", de Fernando Pessoa, remetem, mais que a formulações precisas, a noções desculturadas e restituídas sob a forma de intuições primordiais e remotas, anteriores à escrita, ligadas à esfera da oralidade e do mito.
É certo que o grande filósofo e narrador que era Guimarães Rosa soube como manipular em "A Terceira Margem do Rio" a concepção fatalística de Leibniz, na noção do indivíduo fechado em si mesmo, a priori de todos os fatos que poderão lhe acontecer; assim como as leituras de Platão (ou de "Roman de la Rose") que forneciam as abstrações similares à esfera com o centro em todo lugar e a circunferência em lugar nenhum do seu não-localizável Sertão. Mesmo assim, as sugestões culturais, ao se transformarem em escrita, levam em Rosa aos seus antecedentes, a uma área média, na qual não falam mais Leibniz ou Platão, mas a voz subterrânea de um homem remotíssimo, afundado no tempo, não ainda objeto do seu olhar: em suma, não ainda historicizado.(...)
Quem é Miguilim, vozinha amedrontada e atônita, que fala com a voz de Guimarães Rosa? Ele é a inadequação, entendemos isso à medida que vamos virando as páginas. Inadequação a quê, não sabemos -nem ele entende. E também susto, mas principalmente pena. Pena do mundo e das suas criaturas ou das imagens simbólicas desse mesmo mundo: seja uma anta que caiu nas mãos dos ferozes caçadores, sejam aqueles panos pobres que sua mãe estendia no varal. Esta aliás é a imagem mais forte do livro, que funciona com a força que tem muitas vezes a metonímia mais feliz, pelo poder evocativo do não-dito.
Poderíamos afirmar que Miguilim é um leopardiano. E seu narrador tem consciência disso. De suas ingênuas interrogações a respeito do mundo infinito, assim como da faísca do reconhecimento que um dia ocorrerá sem que ele perceba como um milagre. O seu olhar por enquanto está excluído da sebe espessa, um pouco oleosa dos sinais e dos gestos dos adultos, da epiderme coriácea do real. Aos poucos, com seus olhinhos inadequados, Miguilim espia o segredo que a sebe esconde. "O peso do ser" lhe comunica as primeiras mensagens, a vida começa a revelar-se por oxímoro, com sua negação, com o conhecimento da morte. O cadáver do irmão, com a sua presença inocente e, ao mesmo tempo, com sua insuportável ausência (Dito, morto, era a mesma coisa que quando estava vivo) suscita nele reflexões que, se infantis na aparência, remetem à filosofia da existência. (...)
Miguilim, assim que segura a mão do irmão morto e constata estupefato que é a mesma mão do irmão vivo, diz substancialmente a mesma coisa. E, com o conhecimento formado por meio da ausência, Miguilim alcança o conceito da falta, daquilo que poderia ser mas não é, do que existe, mas não está presente. Tomemos por exemplo a excepcional definição de mar, idéia de um real remoto para uma criança do sertão, que Miguilim improvisadamente intui e pergunta à mãe: "Então o mar é o que a gente tem saudade?".
Assim como o gato da casa, Sossõe, que dormia no oco do tempo, Miguilim percebe que vive no oco do tempo e começa a evadir às apalpadelas, se subtrai ao seu virtual. A cena da destruição dos brinquedos (coisas pobres: um coleóptero verde, uma folha de mica, uma caixinha de madeira), que o pai provoca, e que Miguilim continua com a teimosia de quem quer provar uma grande pena, para dela se libertar, é o aviso de que o fim se aproxima. O emblema da evasão, o superar a linha da sombra. Eis finalmente a descoberta. Veste as roupas de um médico ambulante que roda o sertão a cavalo, que passa um dia pela casa de Miguilim. Na realidade era tudo simples.
Miguilim está agora no cavalo, está partindo e olha em volta. Agora vê o real nos seus mínimos contornos. Mudando de improviso ao atual, o Miguilim, saído do oco do tempo, olha. Mas o que é aquele olhar e o que significa?
Os olhos de Guimarães Rosa estão, agora, atrás das lentes espessas; o menino no cavalo é aquele diplomata, tímido, sempre usando paletó e gravata borboleta, que nasceu no Sertão e que amava contrabandear a sua imagem, deixando-se fotografar como um sertanejo. Está o poliglota que lia Plotino no original, que brincava com as palavras; escritor a quem uma crítica necessitada de classificações definiu como Joyce brasileiro. Está ali no cavalo, olha o seu sertão sem lugar, que ele inventou pacientemente, palavra após palavra, criando nomenclaturas, classificando e batizando. Olha os "grãos de areia, a pela da terra, as pedras pequeninas, as formigas que passam pelo terreno... Olha todos com muita força". Parece que olha também para nós, como se fôssemos uma descoberta. Aí se dilui. Só resta um sorriso. Porque Miguilim sorri antes de acenar com um adeus.
Talvez, para Walter Pater, parecesse um "unfathomable smile" (um sorriso insondável), o mesmo sorriso que ele atribuía às personagens de Leonardo. É provavelmente um sorriso de alegria e também de saudade que se encontra naquela ponte, estendido entre os limites do ser e do não-ser. Mas é também um sorriso metafísico, como o do gato Cheshire, um gato com certeza parente de Sossõe, que ficou dormindo no oco do tempo da remota casa de Mutum.

Tradução de Simonetta Persichetti

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