São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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À cata de bodes expiatórios

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

No âmago do Ocidente liberal e supranacional, em marcha rumo a racionalização absoluta dos comportamentos sociais e a supressão dos arcaísmos ideológicos, o racismo está de volta. Poderíamos nos surpreender com tal evolução intempestiva. Ora, a ciência política não é filosofia. Se esta última, segundo Aristóteles, tem sua origem no espanto, aquela tem por axioma que nada é espantoso. E um de seus exercícios favoritos é mostrar o quanto era previsível o quê, de resto, ela foi incapaz de prever.
No tocante ao racismo e à xenofobia, a justificativa sempre está pronta de antemão. Estes, explicam-nos, são fenômenos de retardamento. E os fenômenos de retardamento são consequência inevitável da marcha adiante. Não há modernização econômica sem o enfraquecimento dos setores de atividade tradicionais e a fragilização das camadas sociais ligadas a tal processo. As populações apreensivas, ameaçadas em seu futuro, desenvolvem então comportamentos regressivos e arcaicos. Elas saem à cata de bodes expiatórios e os encontram nos "outros": os estrangeiros que lhes tomam os empregos, que proliferam e se espraiam pela cidade sob os auspícios da classe política.
Reconhecemos facilmente a fonte de tais preceitos, que se tomam de empréstimo ao velho arcabouço marxista: quando as sociedades sofrem transformações, as camadas pequeno-burguesas ameaçadas se aferram ao passado e se alistam na reação. Sabemos, aliás, que tal marxismo tornou-se, por força da expressão, a ideologia oficial dos Estados liberais e de suas "intelligentsias". A razão deste aparente paradoxo é simples. Há um tema que o otimismo liberal é congenialmente incapaz de compreender: o motivo pelo qual a marcha adiante pode deflagrar a marcha para trás. Se há uma questão, porém, que a literatura marxista levou a um ponto de perfeição insuperável é exatamente este -a análise das razões histórico-econômico-sociológicas que fazem com que a história sempre tenha como resultado algo diverso daquilo em que deveria resultar.
A vantagem destas justificativas com respaldo nas condições econômicas e sociológicas é que elas sempre funcionam, quaisquer que sejam as condições. E funcionam sempre por uma razão bem simples. Elas enunciam, em última instância, uma tautologia, a saber, que os atrasados são atrasados. Essa tautologia tem sobretudo o mérito de assegurar, sem nem sequer precisar explicitá-la, sua incontestável recíproca, isto é, que os avançados são mesmo avançados.
Há dois pontos que os avançados parecem ter singular dificuldade em perceber. Primeiro, que não é necessário estar socialmente ameaçado ou culturalmente "desfavorecido" para ressentir o outro como um obstáculo ao gozo e uma ameaça à identidade. À falta de especialistas em ciência política, foi um psicanalista, Jacques Lacan, que anunciou há 20 anos o novo racismo em forma embrionária no ventre de toda uma sociedade atarefada com o gozo ilimitado.
E segundo, de modo inverso, que o prazer de falar e o de raciocinar são igualmente partilhados pelas classes ditas descamisadas. Se os enunciados racistas sempre andaram de mãos dadas com as promessas de desempenhos sexuais inauditos, tanto nos cediços banheiros públicos como na moderna Internet, é que eles propiciam igual prazer. E não há que se suspeitar aqui da conjugação de uma miséria econômico-social e uma miséria sexual. Há um prazer positivo em brincar com as formulações que identificam os traços do outro com o ridículo, o detestável ou o simplesmente inferior. De fato, há sobretudo um prazer em brincar com as palavras.
A teoria dos avançados reza que os atrasados utilizam as palavras torcendo-lhes o sentido conforme suas necessidades, paixões, medos ou frustrações. No enunciado racista, de acordo com sua tese, haveria forçosamente o peso de paixões populistas ou populares. Em suma, seria preciso aboná-lo e enumerar boas razões de afiançá-lo para que ele tenha sucesso.
Os avançados parecem não perceber que os "atrasados" também são os destinatários de mensagens -políticas ou publicitárias- que figuram neste ou naquele registro dominante da comunicação: a pilhéria ou a explicação letrada. E os "atrasados" aprendem com rapidez. De um lado, os racistas falam como os letrados, na mesma linguagem: eles dizem cada vez menos que os negros são sujos ou preguiçosos, mas explicam cada vez mais que há dificuldades econômicas, problemas de compatibilidade entre as culturas, limites de tolerância e que, feitas as contas, é melhor dar caça aos estrangeiros, pois se não os perseguirmos, corre-se o risco de criar o racismo.
O racismo que se desenvolve hoje em dia, portanto, não é resultado dos "atrasados com o progresso". Ele é perfeitamente sincrônico às formas de legitimação de governos esclarecidos e do pensamento avançado. A intolerância de raças reproduz as formas dominantes de descrição social e o modo reinante da opinião, ou seja, o da crença incrédula, da crença que não necessita gozar de credulidade para surtir efeitos.
A sociologia pós-modernista -à maneira do marxismo tradicional e do discurso de Estado- acredita que a deflação de crenças dificulta as paixões coletivas e assegura a paz social. A dedução, porém, é falsa. A incredulidade e a suspeita podem simplesmente suscitar paixões mais intelectuais, mais lúdicas, mais individualizadas e, consequentemente, mais eficazes, mais adaptadas ao reino da adesão desconfiada e da crença incrédula.
Um bom exemplo disso nos é fornecido pelo crescente sucesso de teses negacionistas. Tais teses contribuem ao anti-semitismo com um influxo puramente "intelectual". Foram os universitários que forjaram, sem qualquer necessidade objetiva ou paixão aparente, as armas do negacionismo. Eles as forjaram valendo-se de temas caros ao pensamento avançado: a dúvida sobre os termos abrangentes que convém serem "esvaziados", o repúdio das interpretações globalizantes e de explicações "maniqueístas".
Tais eruditos declararam que a ciência não conhecia tabus, que "extermínio" era uma expressão ligeiramente exagerada e que cabia investigar a matéria em seus detalhes para averiguar se estes se confirmavam e compunham uma série concatenada de causas e efeitos.
E a razão do sucesso de suas teses é simples: elas não fazem mais do que conferir uma forma provocativa aos modos de pensamento e às formas de crença que pertencem ao regime dominante de opinião. Se diversos parlamentos tiveram de votar leis para proibir que se negasse o extermínio, isso é por que o trâmite legal foi a única solução para coibir a conversão exemplar dos modos de pensamento reinantes em provocação anti-semita. O trivial do pensamento avançado é capaz a todo momento de ser traduzido em versão "retardada".
"Classes esclarecidas, esclarecei-vos!", dizia Flaubert. Este é o mandamento mais difícil de ser cumprido. Quem sai em busca do que lhe está assegurado possuir? E por que submeter a exame as teorias que avançam de vento em popa? Talvez, simplesmente, para não ter mais necessidade de as fazer avançar.

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