São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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A queda dos gênios

SÉRGIO ROJAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Crepúsculo dos gênios e massificação. Entre duas paredes extremas fluem novas músicas, novos fogos criadores no planeta. De um lado a parede de uma erudição desvitalizada, epigonal, estéril, como no Ircam (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), em Paris. Do outro, a parede da vulgarização excessiva, da música-nada como o hit parade do Brasil. Estas duas paredes esmagam o rio criativo, mas ele transborda e se reinventa.
Se observarmos o que se faz hoje na dita música erudita em Paris encontraremos grande sofisticação tecnológica, virtuosismo cerebral abstrato e sérios problemas de vitalidade. O Ircam, até recentemente dirigido por Pierre Boulez, oferece os mais maravilhosos recursos de informática musical no mundo. Mas o resultado das obras da quase totalidade dos compositores que lá trabalham ou trabalharam deixa a desejar. Pré-história da informática, alegam alguns, mas na verdade há um excesso de desvio: desvio da inspiração, do surto primordial dionisíaco, sem o qual a música é apenas artefato.
A Alemanha é mais eclética e mais musical do que a França. Naquela o conceito é secundário, mas a mesma desvitalização atinge a sua música. Um dos mais polêmicos compositores da música dita erudita atual, o inglês Brian Ferneyhough, me revelou em Paris que a música feita no Ircam sofria de anemia incestuosa e que a chamada música contemporânea podia morrer pelo fato de interessar a muito pouca gente. Ferneyhough, um dos mais brilhantes professores de composição musical vivos, radicado nos EUA, disse ainda que o que lhe interessa numa música é que ela seja autêntica e bem feita, sendo o estilo uma questão estritamente pessoal. Ele lamentava que a América Latina não usava suas vivências específicas na criação de sua música dita erudita.
O Brasil tentou criar uma tradição de música erudita que ficou numa posição meramente epigonal em relação às matrizes européias. Espelho diluidor, esta tradição raramente superou a imitação colonizada. Claro que o gênio de Villa-Lobos brilhou e brilhará como um átomo isolado. Alguns outros talentos se realizaram. Acontece que as melhores saídas de invenção musical no Brasil podem ser lidas pela via antropofágica oswaldiana, ainda uma luz a ser reinventada. Tom Jobim, Villa-Lobos e Hermeto Paschoal talvez tenham sido os melhores exemplos brasileiros dessa realidade musical onde os muros do erudito e do popular foram organicamente superados. Uma espécie de caminho do meio, um budismo musical dos trópicos, inaugurando uma linhagem musical verdadeiramente original. Num momento em que a massificação musical instaura um império da surdez, os ouvidos buscam saúde criadora pelo meio.
É interessante ver nessas músicas que podem ser chamadas de fusão, síntese, multiculturais, antropófagas etc. um denominador comum: a necessidade de vivência de profundas diferenças. É a vivência afetiva das diferenças em jogo, amalgamadas pelo talento, que confere a essas músicas solidez e organicidade. Exatamente o que falta ao encontro de um Paul Simon com o Olodum, por exemplo. Remetendo ao quê? Globokar chamou de turismo superficial.
Recentemente apresentei-me com Markus Stochkausen, filho de Karlheinz Stockhausen, em concertos no Rio e São Paulo, apresentando obras nossas no espírito daquilo que chamamos de "comprovisação", e gravando disco ao vivo. Esta nossa aventura se multiplica em artistas que estão inventando novas singularidades musicais mundo afora, que estão deslocando o sentido da composição musical e da própria figura do compositor para além das dicotomias erudito/popular, estrutura/improviso, acaso/destino, caos/ordem, calor/rigor etc. Entre a massificação e o crepúsculo dos gênios, eis o nome de algumas saídas (e há muitas outras):
Javier Alvarez - Mexicano na Inglaterra, é um dos compositores mais interessantes da atualidade. Na linhagem da música eletroacústica, cria um universo tangencial, onde a pulsação corporal atávica dialoga com o refinamento de texturas e timbres. Suas obras "Acuerdos Por Diferencia", para maracas e fita magnética, e "Temazcal", para harpa e fita, soam absolutamente inéditas. Estão no seu CD "Papalotl" (Saydisc Records, 1992, Inglaterra).
Arthur Kampela -Carioca em New York, lançou o disco "Epopéia e Graça de uma Raça Em Desencanto" em 89, no Brasil, e rumou para Manhattan, dando continuidade às suas geniais invenções para violão. Trabalhando com o que se pode chamar de violão preparado e "extended techniques", Kampela adiciona esses recursos ao que lhe é nato: a energia vital dos ritmos brasileiros. Muito além do figurativo, o compositor expressa sua energia ancestral em micropartículas do átomo rítmico, com resultados inauguradores que mereceram a aclamação do "The New York Times".
Mônica Passos - Uma paulista em Paris. Cantora luminosa, ave que se agiganta no palco. Um dos raros brasileiros que atravessaram a cerca do exótico na Europa, estabelecendo uma carreira corajosa, um "Fellini" vocal a serviço das canções singulares que ela inventa com seu marido, o francês Marc Madoré. Algo de pop, impressionismo francês e lirismo brasileiro. Seu disco "Casamento" (EMPR, 1993, França) foi distribuído em vários lugares do mundo. Os brasileiros precisam conhecê-la.
Vinko Globokar - Compositor francês que morou muito tempo na Iugoslávia, é uma espécie de ponto de mutação na música européia atual. Excepcional trombonista, co-fundador do Ircam, tem a maior parte de sua obra filiada à música dita erudita. Mas suas vivências como jazzista enriqueceram sua escritura composicional. O melhor exemplo desta tensão é a obra "Hello, Do You Hear Me?", para coro, orquestra sinfônica e grupo de jazz (em CD Harmonia Mundi, 1994, França).
Anthony Braxton - Americano, é uma das últimas explosões do jazz, um além-jazz. No choque entre a improvisação, a pulsação e a herança de Webern nasce uma música de atmosfera única, Nova York reinventada em moléculas vulcânicas. Seu disco "Anthony Braxton Quartet" (Victoriaville, 1993, Canadá) registra magníficos momentos ao vivo deste criador.
Para não concluir, lembro das minhas conversas com o instigante Brian Ferneyhough, que dizia que o problema em Boulez é que seu pensamento é um pensamento de exclusão, o que acaba gerando absolutismos estéreis. Penso que saídas são convites à inclusão, à soma. E o Brasil precisa celebrar e acordar as diferentes saídas, quebrar esse ranço persistente da monocultura, ainda um problema da estrutura geral do país.
Na música isso significa a quebra das oligarquias culturais, dos feudos excludentes e das hegemonias excessivas. Criar é sobretudo um vôo solo, mas os interlocutores são fundamentais, e não podem ser apenas os virtuais. No crepúsculo dos gênios, morre a megalomania e fica a genialidade como energia transpessoal em movimento. Nascimentos, diferenças criadoras, músicas poros todos.

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