São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A via-crúcis de Riobaldo

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

Riobaldo, protagonista e narrador de "Grande Sertão: Veredas", é um dos personagens mais fascinantes da literatura brasileira.
No livro, já velho, ele narra para um interlocutor que nunca aparece, um homem letrado, a história de sua vida: como ele virou jagunço, como encontrou e reencontrou Reinaldo -Diadorim para ele-, como ele admirava o amigo e detestava Hermógenes -um "pactário"-, como ele próprio fez um pacto com o diabo para derrotá-lo, como ele viu Diadorim morrer e descobriu que o companheiro era uma mulher.
Em "O Roteiro de Deus", o mais longo e denso dos dois ensaios que compõem seu novo livro sobre a obra de Guimarães Rosa, a diplomata Heloísa Vilhena de Araújo analisa essa trajetória do ponto de vista teológico-filosófico, baseada, principalmente, nos filósofos cristãos, mas também munida de vasto repertório mitológico.
Para ela, Riobaldo é um "homo-viator", ele repete, a caminho do encontro final com Deus, as etapas percorridas por Cristo, uma visão original dentre as inúmeras interpretações dedicadas ao livro.
Viator -viajante- foi, aliás, o pseudônimo que o autor usou para inscrever os poemas de "Magma" (que devem ser publicados, pela primeira vez, em novembro pela Nova Fronteira) em um concurso literário, em 1936. Rosa ganhou o concurso.
Na sua análise, a estudiosa compara permanentemente o escritor mineiro ao italiano Dante Alighieri e, consequentemente, "Grande Sertão: Veredas" à "Divina Comédia", obra em que o protagonista, o próprio Dante, também caminha em direção a Deus.
Segundo diz, é usual entre os críticos da "Divina Comédia", a distinção entre três "Dantes": o "Dante-homem", com sua vida concreta, o "Dante-escritor", autor de uma das obras-primas da literatura mundial, e o "Dante-personagem", que percorre o inferno, o purgatório e o paraíso.
Para Heloísa Vilhena de Araújo, a mesma divisão -encontrar três em um- poderia ser feita, em um primeiro momento, com Guimarães Rosa e "Grande Sertão: Veredas".
"Guimarães-personagem" é aquele que se relaciona ao "Manoelzinho-da-Croa", nome de um dos cavalos de combate de Riobaldo -e cavalo de combate é o significado etimológico do nome Guimarães- e também nome do pássaro preferido de Diadorim. Trata-se portanto daquele que reúne Riobaldo, Diadorim e Rosa no que a ensaísta chama de "personagem-único" do romance, um "personagem-total".
O "Guimarães-escritor" surge na luta que o autor trava com a palavra para trazê-la de volta a seu sentido primeiro, original -luta que fazia com que ele revolucionariamente se considerasse um "reacionário da língua".
Por fim, o "Guimarães-homem", momento em que Heloísa Vilhena opta por uma leitura psicanalítica. Ela dá como chave interpretativa da figura de Diadorim e da própria obra um acontecimento da infância do autor.
É o trauma da criança que vê sua irmã, Maria Isabel, morta, sendo preparada pela mãe para o enterro. Naquele momento, ao vê-la pela primeira vez nua, Rosa teria descoberto a diferença sexual entre homem e mulher.
Logo após expor e exemplificar esse raciocínio, divisão com que vinha trabalhando ao longo do texto, a estudiosa, valendo-se de declarações do próprio escritor ("o escritor deve ser o que ele escreve" ou "a língua e a vida são uma só coisa"), o redimensiona: a divisão em três não pode mascarar a unidade entre o homem, o que faz e a sua obra; estão todos "indissoluvelmente ligados", os três são um -no que repete a simbologia da trindade cristã.
É principalmente sobre alguns dos aspectos dessa divisão inicial e dessa indissolúvel ligação que, de sua casa, em Brasília, Heloísa Vilhena de Araújo falou, por telefone, com a Folha.

Folha - A senhora vê a trajetória de Riobaldo, no livro, como um caminhar em direção a Deus, como uma "imitação de Cristo"...
Heloísa Vilhena de Araújo - Cristo é o caminho, por isso o caminho que leva a Deus é uma imitação de Cristo. Riobaldo atravessa as etapas clássicas da teologia e da mística cristã, a etapa purificativa, em que você tem que purificar sua alma, se desligar das coisas terrenas, materiais; depois uma parte de iluminação, em que a luz de Deus abre os seus olhos para uma visão além do material; e por fim a parte unitiva, que é a união com Deus, além da fala, da visão, uma coisa indizível.
Riobaldo, no momento do pacto, mistura uma parte de iluminação com uma de união, porque ele sobe acima das faculdades da mente, a memória, a vontade e o intelecto. Ele diz: "Eu não lembrava de nada, eu não queria nada e eu não via nada".
Folha - Não há um paradoxo na interpretação que vê o encontro com o diabo como um encontro com Deus?
Araújo - No pensamento místico, tudo é ligado, os contrários quase não se separam; é paradoxal mesmo, é para ser paradoxal: o dentro é o fora, o alto é o baixo... É um equilíbrio muito delicado. Por isso, na hora em que ele encontra o mal de chofre, ele está encontrando Deus e não sabe. São coisas indizíveis quase. Coisas que você diz por meio do paradoxo.
Folha - Ao analisar o encontro com o diabo como um encontro com Deus a senhora inverte a interpretação crítica usual do momento do pacto, que é um momento fundamental no enredo.
Araújo - Riobaldo mesmo diz no livro que "às vezes a gente só pode ver o aproximo de Deus na figura do outro". Quando você não vê nada no mundo, quando o mundo some para você, como sumiu na vereda, é que se vê Deus.
O diabo é a imagem. Há um sermão do mestre Eckhart, que Guimarães Rosa lia muito, que diz que, quando São Paulo, na entrada de Damasco, caiu do cavalo e não viu nada, nessa hora ele viu Deus.
Folha - A senhora também diz que Riobaldo, aquele que baldeia o rio, que diz "penso como um rio", ou seja, está diretamente ligado ao elemento água, está, por outro lado, muito ligado ao elemento terra, já que seu símile animal é constantemente o cavalo. Como ele harmoniza os elementos antagônicos e como compõe com Diadorim um "personagem-único"?
Araújo - Não há muita diferença entre ele e Diadorim. Se você une os símiles dos dois -terra e água nele e ar e fogo nela-, aparece o 'personagem-total', que é o 'Manuelzinho-da-Croa'. Diadorim é um pouco a alma do Riobaldo, que é primeiro vista com os olhos do corpo e depois, quando ela morre, com os olhos do espírito.
O "Manuelzinho-da-Croa" é um cavalo de combate do Riobaldo, e o nome de Guimarães Rosa quer dizer cavalo de combate. Guimarães Rosa diz, em algum lugar, 'Riobaldo é meu irmão'. Ele é os dois juntos.
Nisso aparece, como sempre, a vontade do autor de retratar a trindade, são três pessoas -Riobaldo, Diadorim e Rosa- separadas que devem ser vistas juntas, que formam um.
Folha - Mas a senhora vê igualmente uma motivação psicanalítica para Diadorim, a morte precoce da irmã de Rosa, que o teria feito criar um deslocamento em um tema essencialmente picaresco na literatura, que é o da mulher vestida de homem, dando-lhe um sentido trágico.
Araújo - Acho que esses traumas da infância são muito importantes na vida das pessoas, principalmente para quem é muito sensível. E o Guimarães Rosa era extremamente sensível.
Claro que não é a única raiz da personagem nem da obra. É uma hipótese para ajudar a quem quiser refletir sobre o livro. De qualquer maneira, o tema da mulher vestida de homem é recorrente e importante na obra de Rosa. É também um tema recorrente na obra de Cervantes ou nas comédias de Shakespeare, quando acontecem aqueles quiproquós incríveis, as pessoas não se reconhecem, e, no fim, dá tudo certo, que é uma característica da comédia. Em Rosa não, ele leva para o lado trágico -esta conversão cristã é, no fundo, trágica, porque implica uma morte para um certo tipo de vida e um renascer para outro, uma vida espiritual.
Folha - Por que o título "Grande Sertão: Veredas"?
Araújo - "Grande Sertão" seria uma imagem, uma figuração ambígua tanto da eternidade quanto do tempo, e "Veredas" seriam essas entradas pequenas em que o homem vai conhecendo Deus e a eternidade, locais em que vai caminhando devagar.

Texto Anterior: O fracasso terrestre e a vitória espiritual
Próximo Texto: A biblioteca mágica
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.