São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O fracasso terrestre e a vitória espiritual

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

O francês Francis Utéza, professor de literatura brasileira na Universidade Paul Valéry, na França, passou, na década de 70, sete anos no Brasil, em Belo Horizonte, como diretor da Aliança Francesa.
Foi lá que ouviu falar de Guimarães Rosa pela primeira vez. Só quando voltou à França, entretanto, revolveu estudar o "Grande Sertão: Veredas", que, como diz, "era um enigma total".
Desse análise, resultou "A Metafísica do Grande Sertão" (Edusp), publicado há dois anos no Brasil e uma das mais detalhadas análises das tradições místicas presentes no livro.
Para ele, lembrando o mito da caverna, de Platão, o artista é alguém que consegue sair da caverna e traduzir o que capta em sua produção artística. Todas estas produções têm portanto um fundo arquetípico, arcaico, comum. "A diferença é que Guimarães Rosa sabe que está usando este fundo, outros não", acrescenta.
Utéza participou da tradução francesa de "Tutaméia" e "Sagarana" e, no momento, trabalha sobre os aspectos metafísicos de "Primeiras Estórias".
Em agosto o professor, que falou à Folha por telefone, de sua casa, na França, estará no Brasil para dar um curso de pós-graduação em Porto Alegre.
(AS)
*
Folha - Qual é a importância de estudar os aspectos metafísicos em Guimarães Rosa?
Francis Utéza - Acho que todos os mistérios, os enigmas que nós não entendemos a priori se resolvem quando a gente penetra nessa perspectiva. A alquimia e o hermetismo, de um lado, e a tradição oriental, taoísmo, zen-budismo, de outro, dão sentido à interpretação, por exemplo, das aventuras de Riobaldo.
Por baixo -ou por cima- das aventuras reais, há esse conteúdo. Riobaldo, sem saber (ou sabendo), está reencarnando no sertão os grandes mitos das religiões, do hermetismo, do taoísmo. Isso é demonstrável de uma forma relativamente fácil a partir da análise da linguagem e dos nomes, do jogo linguístico que Guimarães está fazendo. É o que eu tentei com "A Metafísica do Grande Sertão".
Folha - No livro o senhor cita várias correntes místicas a princípio díspares. Como elas se conjugam dentro da obra?
Utéza - Elas não são díspares. Existe um fundo comum, religioso-arcaico, a tudo isso. É com ele que Guimarães está jogando. A disparidade somos nós que introduzimos, por querer diferenciar as coisas. Esse fundo arcaico está no imaginário do homem; aí, segundo a civilização em que o homem vive, se desenvolve de uma forma ou de outra -chama-se catolicismo num lugar, taoísmo no outro...
Folha - O senhor poderia explicar melhor esse fundo comum?
Utéza - É a necessidade, por exemplo, de dar um sentido ao universo, a necessidade de o espírito dominar a matéria, a necessidade de o caos fundamental ser dominado por uma ordem superior. A partir daí, o imaginário constrói, fabrica conceitos. Esses conceitos parecem diferentes, mas não são. É a procura da união dos contrários, que é fundamental em todas as religiões.
Folha - Há alguma presença das religiões africanas na obra de Guimarães Rosa?
Utéza - Não. Eu não achei. Mas, de qualquer forma, as religiões africanas desenvolvem as mesmas idéias. O que o "Grande Sertão: Veredas" propõe é a união do Oriente e do Ocidente. E a África, ali no meio, não transparece. Não há personagens negros importantes no livro.
Aliás, em toda a obra de Rosa aparece apenas um que tem um papel desse tipo, que é o João Mangolô, em "São Marcos", "Sagarana".
Folha - Está saindo no Brasil um livro que, a partir de uma análise fundamentalmente cristã, propõe que a personagem de Riobaldo caminha, passando por várias etapas, em direção a Deus. O que o senhor acha disso?
Utéza - Tem perfeita lógica. O que eu acho, de qualquer maneira, é que o livro supera a procura do divino na sua dimensão apenas católica. Para mim, Riobaldo está a procura do divino por cima de qualquer religião identificável. Folha - Como o senhor vê a figura do diabo no livro?
Utéza - O diabo é a mesma coisa que Deus. É o seu lado necessário. São as duas componentes do divino. No "Grande Sertão", Riobaldo é, de certa forma, vítima dessa limitação cultural que separa Deus do diabo. Aí ele fica com essa angústia de ter sido manipulado pelo diabo e não consegue ultrapassar essa dualidade. Mas o seu discurso demonstra perfeitamente que Deus e o diabo são a mesma entidade. Por exemplo, na cena do pacto, quando ele imagina que o Diabo respondeu, não foi o diabo que respondeu, foi Deus. Foi ele que interpretou aquilo na perspectiva negativa, pois carrega nas costas uma tradição judaico-cristã que o força a separar o demônio da divindade. Aliás, o "Fausto", de Goethe, demonstra perfeitamente que Deus e o diabo são companheiros.
Folha - A trajetória de Riobaldo pode ser vista como um rito de iniciação?
Utéza - Como uma série de ritos. Pode-se distinguir claramente três ritos iniciáticos na obra...
Folha - Na tradição clássica, caso de Telêmaco na "Odisséia", por exemplo, o personagem deixa o rito de iniciação modificado -sempre para melhor, transforma-se em um herói. Após o rito, Riobaldo é um vencedor ou um vencido?
Utéza - Riobaldo sai completamente vencedor. Ele deixa de ser jagunço e torna-se um filósofo, um pensador, um ser que não precisa mais de violência, de ação, que agora tem a capacidade de refletir, de pensar, de reconstruir o sentido de sua vida.
Folha - Mesmo tendo perdido Diadorim?
Utéza - Mesmo tendo perdido Diadorim, pois foi ela quem o iniciou nos caminhos. Em todas as cerimônias iniciáticas, Diadorim exerce um papel primordial. A morte de Diadorim é um fracasso terrestre, mas, em termos espirituais, é uma vitória. Ele passa agora a ser, ele mesmo, o iniciador do leitor.

Texto Anterior: Veredas de Deus
Próximo Texto: A via-crúcis de Riobaldo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.