São Paulo, sexta-feira, 5 de julho de 1996
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Realidade supera ficção no assassinato de PC

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Muita gente acha que a realidade supera sempre a imaginação dos romancistas. A ficção nunca é capaz de alcançar o nível de surpresa, de imaginação, de estranhamento, de que é capaz uma notícia de jornal.
As coisas não são bem assim. É claro que o acaso do noticiário pode oferecer excentricidades inimagináveis para um romancista. A mãe do aposentado mata o neto porque queria vingar-se da nora, a quem desejava em função de um lesbianismo mal-resolvido, e serve pedaços do cadáver com molho branco ao filho, glutão que se suicida ao saber do fato.
Um caso desses pode perfeitamente aparecer nas notícias de jornal, mas dificilmente aparecerá em um romance, uma vez que o autor literário tem ao menos de seguir convenções de bom-gosto e de credibilidade ao escrever sua história.
Já a realidade não tem nenhum compromisso com a "credibilidade". Eis um ponto em que a realidade sempre superará a ficção.
Penso estas coisas em função do caso PC Farias. Claro que a hipótese de um mero crime passional é decepcionante para os leitores de jornais. Um pouco acreditando nela, escrevi um artigo sobre o caso na semana passada, que representava a decepção de ver uma personagem tão misteriosa morrendo apenas em função de um caso de amor.
Depois disso, a opinião pública vem vacilando. Foi claríssimo, a uma dada altura das investigações, que a hipótese de crime passional era falsa. Com a aparição do dentista e da nova namorada de PC, essa Cláudia que é tão bonita, a teoria passional ganhou nova força.
Mesmo assim há detalhes inexplicáveis. Por exemplo, o colchão que foi queimado antes de ser feita uma perícia. Para o leitor, para o sherlock amador, este fato é claramente significativo.
Só que estamos interpretando os fatos como se tudo fosse obra de um autor de romances policiais. Pode muito bem ser que o colchão tenha sido queimado à toa, em uma cegueira sem sentido.
Nos livros de ficção, tudo tem de fazer sentido no final. Na realidade, as coisas ocorrem de modo diferente. É plausível que muitos detalhes, muitas perguntas fiquem sem resposta mesmo quando solucionado o caso.
A morte de Kennedy, por exemplo. Foi resolvida, e ao mesmo tempo continua misteriosa. Não houve um autor de romance a organizar tudo o que houvesse de misterioso nessa morte. Seria possível, pois sempre há algo inexplicável rolando em cena.
Ou seja: a fome de sentido, de explicação, de resolução do mistério, protagonizada pelo leitor, nunca poderá ser satisfeita pela realidade. No fundo, o leitor, o interessado, está à procura de um sentido definitivo para o caso misterioso que lê.
Está à procura de Deus. Nos romances policiais, todo pormenor foi "plantado" antes pelo escritor. Tudo faz necessariamente sentido nas páginas finais do livro, porque existe um autor encarregado de dar satisfação dos detalhes que inventou.
Na vida real, isso não ocorre. Detalhes podem ter aparecido, pormenores suspeitos vieram à luz, mas nada garante que tenham qualquer explicação final. Ficcionalizamos, portanto, nossa apreensão da realidade.
O que é um mecanismo religioso. Pensar que tudo, na vida, tenha explicação; julgar que todo pormenor misterioso termine esclarecido: tudo isso é o delírio de quem confia no fato de que qualquer coisa, na vida real, possa ser explicada, deva constituir-se em vitória contra o acaso.
Mas o pensamento irreligioso tem sempre de acreditar no acaso. Isto é, a queima do colchão, os pormenores misteriosos do caso PC podem muito bem ter sido absurdos, inexplicáveis, malucos. Puro acaso. Só a religião acredita que há sempre, por trás de cada acontecimento misterioso, uma Razão Superior a dar conta de tudo; o raciocínio conspiratório, a crença em uma máfia do homicídio tende a ser otimista, portanto, à medida que confia em um doar-se universal do sentido, em uma compreensibilidade, em uma solução sherlockiana para todo o mistério.
A vida não é assim. Nem tudo faz sentido no cotidiano. Nem tudo se explica. A vontade de que tudo seja explicado, no caso PC, é influência da ficção, dos romances policiais, sobre uma realidade que os supera, de forma decepcionante e ao mesmo tempo cheia de surpresas.

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