São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Manifesto contra a ilusão estática

ANTÔNIO LÁZARO DE ALMEIDA PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Catedrático de literatura portuguesa e brasileira, o escritor Antonio Tabucchi jamais merecerá a ironia de Shaw: "Quem pode, faz. Quem não pode, ensina" ("He who can, does. He who cannot, teaches").
Com grande domínio da língua portuguesa, traduziu para o italiano Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.
Estamos pois em face de um escritor consciente de seu ofício, conhecedor das técnicas e estratégias ficcionais. Tabucchi porque pode, faz. E por isso é mestre, no saber e no fazer.
Ciente de que o pior das ditaduras reside na opressão à natureza, ao natural, adota a forma singela e artisticamente "natural" do relato, para conseguir dar-nos, ao natural e por dentro, uma análise da mais longa ditadura do século 20: a do professor Salazar em Portugal. E, nas entrelinhas, dá-nos ciência de outra ditadura ibérica longeva, a do caudilho "que no muere", assim como as ditaduras repletas de bravatas: a mussoliniana, "que tem sempre razão", ou hitlerista, prometedora de um reino "de mil anos"...
No fundo, o romance "Afirma Pereira" (cuja adaptação cinematográfica, "Páginas da Revolução", estava em cartaz em São Paulo até o fechamento desta edição) é uma defesa artística da vida, com sua complexidade dinâmica, contra o inumano imobilismo das regras totalitárias, da estabilidade imutável de leis, normas e comportamentos castradores.
Ora, tudo se passa ao longo de mais de um terço do século 20, em Portugal.
Essa intolerável opressão longeva acaba por atingir até mesmo os que desejavam opor-lhe mera resistência passiva, ou se quiserem, os que ensaiavam (em termos de Arthur Koestler) combater os comissionários com as armas dos iogues...
É o caso (exemplar), do protagonista do romance: um jornalista português, católico, viúvo e refinado leitor dos romancistas (católicos) franceses Bernanos e Mauriac.
Ex-jornalista policial, o doutor Pereira mantinha, em um jornal lisboeta, uma coluna cultural, que devia ater-se às normas da censura salazarista. Padecendo o jornalista de certa obsessão pela morte, precisa de agregar à coluna cultural o necrológio dos grandes escritores do século 20. Para o que contrata um auxiliar, um filósofo, que defendera uma tese universitária consubstanciando reflexões sobre a morte.
Paradoxalmente, o filósofo Francisco Monteiro Rossi, tratando da morte, introduz o "inconveniente" dinamismo da vida e da resistência ativa à estática mortífera da ditadura. E surge uma teia complicada, que acaba por envolver o pacato Pereira da coluna cultural do Lisboa...
A teia refina-se com a presença de um médico e psicanalista, que leva Pereira a decidir pela vida e suas saudáveis complicações.
Ora, não vamos substituir-nos ao prazer da leitura de "Afirma Pereira". Não relataremos o desfecho do romance. Perfaçam os leitores brasileiros o itinerário ficcional desse texto admiravelmente bem urdido.
O romance é breve. Os capítulos são curtos e bem travados. Vê-se que o escritor Antonio Tabucchi sabe fazer e por isso ensina, com maestria, a contrapelo de Bernard Shaw...
Tabucchi, assistindo ao sepultamento de Pereira, simula assumir e converter em romance o relato (póstumo) que lhe é passado.
O leitor reviverá, com emoção, mas sem grandiloquência poética, o período da Segunda Guerra Mundial e o do após-guerra, este, com o ocaso das ideologias oitocentescas e de seus líderes carismáticos da "direita" e da "esquerda".
A tradução brasileira é, no geral, boa. Apenas não ocorreu à tradutora que a cidade de "Oporto" (páginas 64, 70, 106 e 118) é simplesmente a cidade do Porto. Já quem elaborou a orelha do volume da tradução deve saber que Tabucchi nasceu em Pisa, e não em Piza...
"Afirma Pereira" cumpre o conselho do poeta Horácio: deleita e ensina. E recorda outro achado (trouvaille) horaciano das "Epistolae": "Mesmo que expulses a Natureza com o forcado, ela voltará correndo: Naturam expellas furca, tamen usque recurret". O que o discreto dramaturgo francês Destouches vulgarizou lapidarmente: "Expulsai a natureza e ela voltará a galope (Chassez le naturel, il revient au galop)".
O que vale como uma garantia da vida, contra a ilusão estática das ditaduras. É sempre um consolo...
Até porque Tabucchi, com a altivez homérica dos narradores, poderia dizer que fatos e relatos ocorreram para que o romancista pudesse fixar e, simplesmente, relatar, com a alma e relato enxutos e comoventes...

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