São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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A luta contra a morte

ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Andreï Makine nasceu na Rússia em 1957. Doutorou-se em literatura tanto em Moscou quanto na Sorbonne. Foi jornalista na Rússia e professor em Paris na Escola de Ciências Políticas.
Vive em Paris desde 1988 e escreveu quatro romances em francês. Com o último, "O Testamento Francês", ele arrebatou o prêmio Medicis e também o maior prêmio literário da França, o Goncourt.
O livro, publicado pela Editora Mercure de France -onde a entrevista a seguir foi feita-, tem inegável conteúdo autobiográfico. Trata-se de um menino nascido na Rússia que, já no berço, sonhava com a França por causa de Charlotte, a avó. Ela, filha de francesa, contava ao neto histórias inesquecíveis sobre o país da mãe e a ele falava de Proust, fazendo o menino imaginar um dândi de olhos langorosos andando entre cabanas de madeira. Trata-se sobretudo de Charlotte, que vivia na Rússia com uma eterna saudade de Paris e levava o neto pelas ruas da cidade-luz, fazendo-o ouvir os grandes poetas, introduzindo-o na cultura que ele iria depois adotar.
"O Testamento Francês" é um romance que faz passar da Sibéria a Paris, da guerra à paz, apresentando uma Rússia em que o escritor era um Deus e uma França que se confundia com a literatura. Por meio dele, vemos surgir um personagem que se constitui entre dois universos, como aliás todo filho de imigrante. Sua aventura mostra que ser educado em duas línguas é olhar a realidade de dois modos diferentes e que, para o escritor, a estranheza é um trunfo. Pela força extraordinária do seu livro e pela sua experiência linguística, Makine faz pensar em Nabokov.
*
Folha - Por que o título "O Testamento Francês"?
Andreï Makine - Não existe outro título possível. A idéia do testamento exprime perfeitamente a idéia da transmissão da herança cultural. Nesse livro eu falo do que me foi legado.
Folha - Por que o sr. deixou a Rússia?
Makine - É um outro romance que vou escrever. O fato é que eu me encontrei entre duas Rússias, uma que morria e outra mafiosa, corrupta, na qual não podia viver.
Folha - O sr. escreveu em russo?
Makine - Poemas, quando jovem.
Folha - Por que o sr. mudou de língua?
Makine - Não tenho o sentimento de ter mudado. Já estava instalado na língua francesa, que eu chamo de "língua da avó" (langue grand-maternelle).
Folha - Mas o sr. já escrevia em francês quando estava na Rússia?
Makine - Escrevia cartas, tinha uma correspondência importante com meus amigos. Nunca tive a impressão de franquear uma barreira, o francês é uma língua que já estava em mim. Claro que a língua literária exige algo mais, porém mesmo essa eu já tinha. Sabe, acho que nossas línguas nacionais não passam de pequenos dialetos em relação à língua poética.
Folha - Ainda escreve em russo?
Makine - Sim, como Nabokov, em duas línguas...
Folha - O francês tem uma gramática rígida, um léxico reduzido em relação a línguas como o russo ou o inglês. Quando passou a escrever em francês, o que o estimulou ou o entravou mais?
Makine - O que mais me estimulou foram os entraves. Gide dizia que, quanto mais entraves, mais perfeito é o texto. E tinha razão. Estamos habituados, no século 20, à anarquia. Isso deu origem a uma pseudoliteratura. Toda a poesia moderna é pseudopoesia, porque não existe mais forma, lei, entrave...
Folha - Como assim toda a poesia? Mesmo um Grunsberg?
Makine - Não é poesia para mim. Precisamos voltar às formas poéticas, à rima, à cadência, à respiração... Você usou o termo "rígido", referindo-se ao francês. Já eu diria que é uma língua precisa. Considere a palavra "mortdoré", por exemplo, que designa uma mistura de vermelho, marrom e dourado. Em russo essa precisão simplesmente não existe.
Folha - Cada língua recorta o mundo de uma maneira particular. Qual é a especificidade do recorte russo em relação ao francês?
Makine - O tempo. Em francês há 26 formas temporais. Em russo, só três: presente, passado e futuro. A temporalidade é diferente. Consequentemente, o movimento e os gestos têm um outro valor.
Folha - Por exemplo?
Makine - Quando você fala da ação que aconteceu ontem, em francês, emprega o passado composto. Tratando-se da ação que ocorreu antes de ontem, o francês se vale do mais-que-perfeito. Nos dois casos, o russo usa o único passado que existe. Além disso, no russo, a fronteira entre o passado e o presente praticamente inexiste. Você está no passado e logo, de novo, no presente.
Folha - Deve ser um universo mais angustiante...
Makine - Sim, porém a nossa grande força está na relação com o tempo. Não precisamos de tanta precisão. Meu revisor me critica por usar muito o imperfeito. Daí, eu abro o Proust e mostro que ele também fazia isso.
Folha - O sr. está dizendo que os escritores cuja língua materna não é a francesa e que vêm de outros universos podem dar uma contribuição importante ao francês?
Makine - Sim, e é aliás o único interesse do nosso trabalho, que não deve ser provocador. Do contrário, não há como subverter a língua.
Folha - No seu romance, o personagem dá a entender que a magia das palavras francesas estava ligada ao desconhecimento das mesmas. Depois, ele diz que a língua da avó era a língua da surpresa. Seria razoável afirmar que a língua privilegiada pelo escritor, quando ele é bilíngue, é aquela em que ele mais se surpreende?
Makine - Sim, é isso mesmo. A língua do escritor, ao contrário da língua profana, é surpreendente.
Folha - Mas o sr. se surpreende em duas línguas, russo e francês.
Makine - Menos no russo, que é a língua do meu cotidiano... Tenho uma visão muito particular da língua enquanto matéria léxico-gramatical. Trata-se de um instrumento que a gente maneja, ou melhor, o nosso olho o faz...
Folha - O seu personagem diz que foi graças aos próprios sonhos que pôde suportar os primeiros passos neste mundo, em que o livro, "o órgão mais vulnerável do nosso ser", se torna uma mercadoria. De sonho em sonho, o sr. chegou ao Goncourt e, além da notoriedade, conquistou o mercado. O sr. diria que o desafio atual é escrever uma obra literária que possa se inscrever no mercado?
Makine - O meu romance não foi concebido para o mercado. Foi recusado por várias editoras por causa do aspecto poético. A primeira tiragem foi de 3.000 exemplares, e o editor tinha muitas dúvidas. Os editores se esquecem que a poesia passa quando ela é clara e exprime a eternidade. Lutei no "Testamento Francês" para impedir que um ser que eu adorava morresse, porque não é possível conceber a morte de um ser amado. A gente, aliás, só escreve para lutar contra a morte. Trata-se do único objetivo do escritor.
Folha - Mas um escritor sabe que a imortalidade da obra não o torna imortal.
Makine - O que me interessa é a eternidade. Se um livro a atingiu, ele fica. Sim, em algum lugar, ele fica. É o eterno, é a constelação de estrelas...
Folha - Mesmo sendo mortal, a gente toca a eternidade...
Makine - A condição da eternidade é a nossa morte.
Folha - Curioso que o sr. tenha se referido à constelação de estrelas. Segundo um mito brasileiro, viramos uma estrela ao morrer. Há pontos comuns entre a cultura russa e a brasileira, o sr. sabia?
Makine - Tenho a intuição que vou morrer num lugar da Argentina ou do Brasil, em algum lugar perdido da América do Sul.

Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" e "A Paixão de Lia".

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