São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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A corporação e o cinema paradaço

ALAIN FRESNOT
ESPECIAL PARA A FOLHA

A linguagem é curiosa, certas palavras se carregam rapidamente de novos significados. Nem sempre inocentes, estas mudanças têm a marca dos grupos que as criam ou que desvirtuam as palavras de seus significados primeiros. Tivemos, criação da direita feroz, o "subversivo".
Subversivo era o oponente ao regime, o "outro". O subversivo, era a encarnação do mau brasileiro, do antipatriota. Nada de bom poderia se esperar de um subversivo. O uso repetido e geral do adjetivo praticamente desumanizava o cidadão, colocando-o à mercê de qualquer arbitrariedade, e nada mais natural do que torturar um subversivo.
Sem a mesma eficiência, como sempre, a esquerda também operou suas mágicas com a linguagem. Tivemos o "reacionário". O "reacionário" era antes de mais nada um burro, nenhum lampejo de inteligência poderia ou deveria ser esperado do "reacionário".
Demorou um tempo para que certa esquerda, quase toda, acabasse se conformando com que um reacionário pensasse e que ele pudesse, ó horror... ser talentoso.
Hoje se abusa da palavra "corporativo", que quer explicar muito, mas no fundo esconde o mesmo oportunismo, a mesma preguiça mental dos casos acima.
Quando não se sabe muito bem o que está incomodando, quando não se quer enfrentar um problema de frente, acusa-se o proponente de corporativo.
É uma palavra boa, não muito usada, misteriosa o suficiente para enviar muitos a uma consulta ao Aurélio, sutil acusação que pode ser gravíssima.
Em alguns casos, essa acusação suprema e irrecorrível é justificada. O inchaço do Estado, ou outro motivo qualquer, pode gerar distorções que levem certas categorias a colocar seus interesses acima dos interesses maiores do desenvolvimento do país. Seria o caso do cinema brasileiro?
No nosso caso, a acusação de corporativismo tem sido fruto de má-fé, desinformação ou "demofobia".
O direito de existência do cinema brasileiro é constantemente questionado com base em argumentos que denotam as simpatias políticas de seus porta-vozes.
Com Collor tínhamos a política do livre mercado, a idéia básica era a da falta de importância, da desnecessidade absoluta do cinema brasileiro. Era a elite obtusa, culturalmente indigente no comando.
Hoje, graças inicialmente a Itamar Franco e a um mínimo de legislação de apoio à produção, temos um renascer do cinema no Brasil.
Essa legislação, toda baseada em renúncia fiscal, está permitindo a realização de vários projetos, mas não se pode deixar exclusivamente à iniciativa privada a responsabilidade da cinematografia que vai nascer, pois cinema não é só negócio, é também arte e cultura, formação e informação.
Parte da elite mais moderna, jornalistas, cronistas chiques e curiosamente até alguns cineastas, se sentem incomodados pelo cinema brasileiro e trabalham para impedir o fortalecimento e a instalação definitiva da atividade de produção no Brasil.
Dentre os seus argumentos, está o de acusar os cineastas de corporativos.
Outro equívoco, não menos pernicioso, é o de pôr em confronto o cinema de "produtor" com o cinema de "autor", como se o último fosse o grande culpado da incompetência do Brasil em se dotar de uma indústria do audiovisual.
O raciocínio é o seguinte: o cinema brasileiro não tem público porque é de autor, consequentemente a figura do produtor seria o provedor do contato entre o cinema e o público. O produtor sabe o caminho das pedras, portanto todo poder ao produtor. "Seria cômico se"... No cinema brasileiro predomina quase sempre o diretor/produtor como a mesma pessoa, quando não são marido e mulher ou pai e filho, e assim foram feitos os maiores sucessos.
Essa é hoje uma falsa polêmica. Com raríssimas exceções, todo produtor sabe que cinema é com o autor.
Longe de ser unida e estar consolidada, a "corporação" que torceu pelo "Quatrilho" no Oscar é incapaz de formular um projeto para o cinema brasileiro. Apesar da boa vontade do ministro Weffort, que é sensível à importância do cinema, a precariedade em que nos debatemos e o estado de indigência a que o cinema brasileiro foi levado fizeram com que a categoria perdesse completamente o rumo e esteja essencialmente paralisada.
Essas considerações podem parecer estranhas nesta hora de "euforia", de retomada da produção, mas sem uma série de medidas urgentes esta fase "bacana" que estamos passando será como tantas outras mais um ciclo, nome elegante dos vários "surtos" do cinema brasileiro ao longo de sua história.
Se isto serve de consolo a alguém, alguns países desistiram de ter uma cinematografia. Outros a defendem como podem, e em geral não podem.
Pessoalmente prefiro o cinema italiano, mas a França é um dos poucos países que consegue defender sua produção, a ponto de ter sido objeto de profundo desentendimento com os Estados Unidos quando das últimas negociações do Gatt.
Na França, em 95, 30% dos ingressos vendidos foram de filmes franceses. É uma marca excelente se comparada a outros países da Europa; no Brasil, mal chegamos a 5%. Para efeito de comparação, diga-se que no tempo da Embrafilme chegávamos a quase 50%. Ainda na França, em 1995, foram produzidos 141 longa-metragens, graças a um conjunto de medidas.
Desde o fim da Segunda Guerra, o Estado francês intervém, harmonizando os interesses frequentemente contraditórios de exibição, televisão e cinema. Dentre as várias leis que viabilizam a produção francesa, está a de obrigar as emissoras de televisão a investir 3% do seu faturamento em cinema (20% no caso de TV por assinatura).
Para o ano de 1996, o CNC, a Embrafilme deles, investirá US$ 480 milhões no cinema. Desses, US$ 350 milhões virão do faturamento das TVs mencionado acima, US$ 130 milhões são oriundos de taxação sobre o ingresso vendido.
Tivemos esse mecanismo, em proporção menor, quando da venda do ingresso padronizado pela extinta Embrafilme.
Hoje temos em funcionamento uma câmara setorial da indústria do audiovisual, antiga reivindicação da "corporação" no sentido de sugerir soluções para a atividade.
Essa câmara setorial já inviabilizou o ingresso padronizado como fonte de recursos para a produção, ao manter a autorização de impressão dos ingressos junto à federação dos exibidores.
Ainda na França, outros US$ 20 milhões são oriundos do mercado de home vídeo para o desenvolvimento do cinema. Tais recursos não são só para a produção, há uma preocupação com a memória, as cinematecas, a conservação das salas de exibição e a manutenção de salas eventualmente deficitárias junto a comunidades e bairros menos favorecidos.
Temos um longo caminho a percorrer: o nosso cinema só é exibido no "gueto" cultural, nossa lei de obrigatoriedade não é cumprida, não temos sequer levantamento de dados e estatísticas sobre a atividade. A abertura de uma carteira pública de produção está em compasso de espera e a Secretaria do Audiovisual está absolutamente subdimensionada, como aliás o Ministério da Cultura do qual faz parte.
Não se pode pretender uma indústria de cinema hoje em dia se não houver algum tipo de constrangimento à televisão. É impossível, a não ser por imposição legal, fazer um empresário de TV investir US$ 300 ou US$ 400 mil em uma produção, se existe no mercado internacional produto semelhante a US$ 20 mil. Tentar conciliar todos os interesses é impossível. O preço é a cabeça do cinema brasileiro na bandeja.
O custo político de manter o cinema brasileiro eternamente claudicante é menor que o de enfrentar poderosos lobbies, mas a conciliação eterna nos inviabiliza.
É o cinema paradaço...

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