São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Testemunhos da beleza edênica

NUNO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A exposição de Paulo Pasta na Galeria Camargo Vilaça põe em xeque, com uma força que há muito não se via, a idéia da pintura como planta frágil, espécie de relicário de possibilidades extemporâneas. São nove quadros em que o gênero pintura está inteiro, potencializado, como um fruto incendiado por dentro até o limite físico do sabor, da cor e da beleza.
Numa formulação genérica, procuram reunir a feição retraída de artistas como Guignard e Volpi à evidência de um artista como Eduardo Sued -ou, em outro sentido, do americano Brice Marden.
Este projeto paradoxal, que atrai para o seu conceito os pontos extremos do que a pintura brasileira produziu de melhor (ficando de fora, creio, a imaginação do gravador e desenhista Oswaldo Goeldi e do último Iberê Camargo), responde pela aparência dúbia dos quadros, ao mesmo tempo enlutados e belos, feitos de uma luz espessa, quase matéria, retratos de um mundo perfeito que é também, como no poema de Manuel Bandeira, o umbral da morte: "Quando a indesejada das gentes chegar (...)/ Encontrará lavrado o campo, a casa limpa/ A mesa posta/ Com cada coisa em seu lugar".
Esses são quadros literalmente difíceis de ver. Uma luminosidade excessiva aproxima as diferenças de tom e de cor, como uma sobreposição impossível de sombras luminosas, coloridas, que torna difícil encontrar o ponto de foco. A cor não reflete, mas guarda a luz, o que torna os quadros iluminados desde o interior. Com isto, aquela característica tão marcante nos grandes coloristas, a expansão aparentemente ilimitada da superfície do quadro, ganha a desaceleração de uma matéria que a difunde e refrata.
Os quadros parecem amadurecer à nossa frente, bombardeados desde dentro por uma luminosidade avassaladora. O que perdem em expansão ganham em intensidade. Daí que apareçam sempre por inteiro, reduzindo drasticamente o jogo entre a parte e o todo. Vemos suas partes, seus signos (colunas, arcos), mas é o todo do quadro que floresce e matura, cioso de sua integridade.
O aspecto que toma o centro da preocupação de Paulo Pasta não é o contraste entre as cores, nem a proporção entre a expansão da cor e a contenção da linha, mas sempre a intensidade da cor, presente tanto na cor pura, nomeável, quanto no tom mais remoto. Tudo se passa como se um sol poderoso iluminasse a cena a ponto de torná-la quase invisível. Diferenças como luz e sombra, cor e tom, cheio e vazio, superfície e profundidade são rebaixadas até o limite, em favor da maximização da presença do todo. O quadro herda beleza e idealidade dessa equalização de todas as suas partes no mesmo valor de intensidade extrema. Se o trabalho de Paulo Pasta (como ele próprio diz) remete à memória, é a partir deste aspecto: o ato de lembrar, bem como o de imaginar, é em geral mais intenso do que seus conteúdos.
A espacialidade nos quadros de Paulo Pasta obedece a um princípio semelhante. Trata-se de uma espacialidade já cheia, na qual conteúdo e continente se abraçam numa mistura inseparável. É claro que desde o céu carnal de Van Gogh, passando pela reversão constante entre cheio e vazio em Cézanne, posteriormente no cubismo, em Matisse e, já numa dimensão quase ética, na pintura de Morandi, essa espacialidade reversível em relação ao objeto está plantada. Mas creio que no trabalho de Paulo Pasta ela ganha uma inflexão que tem origem numa questão central à arte brasileira.
Tomemos como exemplo o trabalho de Amilcar de Castro: não há ali um espaço afirmado sobre o qual ele trabalha (como há em artistas como Richard Serra ou Robert Smith). O espaço está entranhado no ferro, misturado ao minério, adormecido no peso. Ele como que pula para fora da peça quando esta é fendida e dobrada. Se por um lado a escultura, ensimesmada, perde expansão, de outro ela não deixa de emanar para sempre a potência do que traz guardada, chamando para si, como cria sua, o espaço em que está posta. Este entrelaçamento irremediável entre matéria e espaço (que talvez tenha sua origem numa separação não de todo realizada entre natureza e cultura) será posteriormente retomado, de modo muito diverso, nos trabalhos de Iole de Freitas, Tunga e Waltércio Caldas.
No caso de Paulo Pasta, o projeto é substantivar o espaço pelo valor de intensidade do visível (pela cor). Ele não deve aparecer como condição daquilo que está colocado nele. Deve estar, de certa forma, sobreposto e desabado em si mesmo, ele mesmo coisa, ele mesmo pedra, ele mesmo ar, como se aquilo que está entre as garrafas de Morandi pudesse agora coincidir por inteiro com elas.
O espaço em Paulo Pasta não quer desagregar-se naquilo que está contido nele (sofrendo, passivo, seu exílio e seu enredo), nem ser condição abstrata, intocada, dos seres e das coisas. Deve ter as propriedades do que tem corpo, carne e concretude sem sofrer no entanto as suas vicissitudes: apodrecimento, envelhecimento e história. Por isto um dos poucos elementos ainda não inteiramente dominados pelo sistema simbólico do trabalho é um certo arcaísmo arquetípico contido em colunas, arcos, jarros, templos.
Por isto também o oco do trabalho, sua pergunta sem resposta, é justamente o que pintar. Afinal, sua vocação substantiva não pode ser saciada com substantivos. No entanto, pintar para Paulo Pasta continua sendo pintar algo -talvez uma mistura de ruína com cesta de frutas. Mas seria preciso que a ruína fosse, ao mesmo tempo, número e geometria e a fruta, céu e natureza infinita.
Talvez essa contaminação entre o espaço e as coisas, entre a condição e o condicionado, pudesse nos levar ao próprio Éden. Às vezes, penso que é a vocação destes trabalhos. Afinal, tiram sua feição de um direcionamento ambicioso no sentido do que é perfeito e sem nódoa, idealidade sem nome nem fissura, e constroem lenta e minuciosamente o testemunho do que viram. No entanto, basta deter o olhar nessas pinturas para sentir uma certa inquietude. Nossos olhos não acompanham a sutileza dos seus semitons. Estamos sempre aquém do que podemos ver, em dívida perpétua diante do que oferecem.
Será que não somos supérfluos aqui? Não estamos sendo expulsos de tanta beleza? Beleza, aliás, que tem a tristeza do que nunca foi tocado, o cansaço de uma virgindade excessivamente prolongada, uma eternidade que pede quem sabe finitude e barulho. É esta aflição, este grão de impureza que tira o trabalho das alturas e o traz de volta ao exílio e ao medo, onde já estávamos, e de onde saímos agora transformados.

A exposição de Paulo Pasta está em cartaz até dia 12 na Galeria Camargo Vilaça (r. Mourato Coelho, 1.500, Pinheiros, tel. 011/210-7390).

Texto Anterior: A corporação e o cinema paradaço
Próximo Texto: Estudo relaciona câncer e comida
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.