São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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A grandiosidade de um poeta épico sem precursores

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "William Shakespeare" (1864), Victor Hugo procurou definir o caráter profético de sua própria originalidade para o romantismo francês: "O século 19 vem de si mesmo; não recebe impulso de ancestral algum; é o filho de uma idéia... mas tem uma augusta figura materna na Revolução Francesa". Assim como Shakespeare não tinha pai na literatura, também Hugo, verdadeira encarnação do seu século, negava qualquer precursor, exceto a Revolução. É bem verdade que a Bíblia e Shakespeare contam mais para a sua poesia do que qualquer antecessor francês, pelo menos depois que desaparecem os primeiros efeitos de Chateaubriand.
Os poetas ingleses Blake, Wordsworth, Coleridge, Shelley e Keats, ao se distanciar do neoclássico Alexander Pope, tinham a tradição de Spenser, Shakespeare e Milton como amparo; mas Hugo e seus contemporâneos não poderiam se ver, de maneira análoga, como uma renascença da Renascença. A cultura literária francesa é tão incapaz de se livrar da influência de um Boileau quanto do cartesianismo, e isto a despeito da tirania da filosofia alemã naquele país, desde os movimentos estudantis de fins da década de 60.
Sempre recordo, com encanto, uma viagem de trem, há quase 20 anos, voltando de Princeton para Yale na companhia do mais importante teórico francês da desconstrução. Éramos amigos há pouco tempo; tínhamos nos encontrado por acaso, depois de dar palestras em Princeton, e começamos uma discussão sobre atualidades culturais. Eu deplorava uma forma tardia de modernismo francês, pela qual meu amigo fora completamente absorvido, e defendia a força poética de Victor Hugo, em oposição ao nome da moda de Mallarmé. Com o mais sincero espanto, meu companheiro filósofo explodiu: "Mas Harold, na França só se lê Victor Hugo no ginásio!".
Não creio que haja perigo em profetizar que Hugo, como Shelley, ainda há de enterrar todos os que tentaram enterrá-lo. Sua poesia sofre tanto em inglês quanto a de Shelley em francês. Não existe uma tradução adequada que seja, e é improvável que algum dia exista. Mas curiosamente Hugo é um poeta que, de certa forma, se enquadra melhor na tradição anglo-americana do que na francesa.
Em seus momentos mais fortes, ele é um criador de mitos, um poeta visionário, assim como Blake e Shelley. Infelizmente, não tem quase nada da força conceitual de Blake, nem se aproxima da sutileza e inteligência cética de Shelley. E, assim como não foi favorecido pelos talentos de Blake e Shelley, também não teve a fortuna (uma vez que não havia precursores épicos em sua própria língua) de uma relação agonística, de combate poético com um deus mortal como John Milton.
Teve, portanto, de tornar-se o seu próprio Milton -com resultados desiguais, é preciso que se diga, pensando em "La Fin de Satan" e "Dieu". Espantosos como são, esses dois épicos não exibem a autoridade consumada de Hugo, em poemas como "À Albert Drer", "Tristesse d'Olympio", "Booz Endormi", "À Théophile Gautier", "Orphée" e tantos outros. É a autoridade de uma expressão tão direta que toca o Sublime: "Que ele atenda o meu desejo. Sou a alma humana que canta,/ E estou amando".
Se as noitadas conversando com espíritos chegaram a sabotar essa eloquência de Hugo, a partir de 1853, é difícil de saber. A poesia apocalíptica é um gênero perigoso, especialmente quando trabalhada em grande escala. Ao contrário de outros poetas, como Yeats e nosso contemporâneo James Merrill, Hugo jamais chegou a elaborar sistematicamente suas revelações sobrenaturais, seja em prosa ou em verso. Em vez disso, escreveu poemas fragmentários, que expõem e na mesma medida recusam-se a expor suas fantasias cosmológicas. Conjuntamente, então, "La Fin de Satan", "Dieu" e boa parte de "La Légende des Siècles" formam o equivalente francês mais próximo da grande modalidade de poesia inglesa que tem no "Paraíso Perdido" sua obra-prima, e uma segunda vaga em "Jerusalem", Milton, e nos "Four Zoas", de Blake, em "Prometheus Unbound", de Shelley, e nos dois fragmentos do "Hyperion", de Keats.
Mais do que a arquitetura é a textura que dá força aos versos de Hugo. Custou-lhe bastante a falta de um precursor épico francês, ou ao menos um que pudesse reconhecer como tal. Recordamos seus poemas apocalípticos como momentos, ou passagens independentes, e não como formas plenamente realizadas. Mesmo se não foi um Blake, ou Shelley, ou Keats, permanece seu rival nesses fragmentos grandiosos, visões de um abismo que criou para si. Hugo escreveu a própria elegia, em parte, no lamento por Gautier, em que canta a despedida de seu século:
"Passons; car c'est la loi; nul ne peut s'y soustraire;/ Tout penche; et ce grand siècle avec tous ses rayons/ Entre en cette ombre immense o— pâles nous fuyons./ Oh! quel farouche bruit font dans le crépuscule/ Les chênes qu'on abat pour le bÛcher d'Hercule!" (Passemos, pois é lei; ninguém escapa;/ Tudo descai; e este grande século, com todos os seus raios,/ Entra na sombra imensa, onde fugimos, pálidos./ Ah! que estrondo feroz não fazem, no crepúsculo,/ Os carvalhos, abatidos para a pira de Hércules!).
Esse Hércules, para cuja pira os grandes carvalhos estão sendo abatidos com tamanho estrondo, bem mais que Gautier, é o "Booz" de Hugo, cujos olhos refletiam luz e grandeza, e voltavam-se para Deus com a mesma naturalidade com que se voltavam para si mesmo, porque a eternidade já era algo de seu:
"Le vieillard, qui revient vers la source première, / Entre aux jours éternels et sort des jours changeants; / Et l'on voit de la flamme aux yeux des jeunes gens, / Mais dans l'oeil du vieillard on voit de la lumière." (O velho, que retorna à fonte primeira, / Entra em dias eternos e deixa os passageiros; / E nos olhos dos jovens vê-se a chama, / Mas nos olhos do velho vê-se a luz.)

Haroldo Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e de Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva). O Mais! publica mensalmente seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.

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