São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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'Corcunda' cor-de-rosa

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Corcunda de Notre Dame" é um Disney a mais, nem dos melhores nem dos piores. O novo "101 Dálmatas", anunciado para novembro (não em desenho animado, mas filme com Glenn Close e naturalmente 101 cachorrinhos de verdade), será provavelmente mais divertido.
O lançamento do "Corcunda" não seria em suma um evento muito interessante, salvo que o desenho levantou críticas que, elas sim, valem um comentário.
Nas páginas do "New York Times" (23/06), Paul Goldberger fez um ataque detalhado à revisão Disney do mundo. O argumento é banal: é bom Disney oferecer desenhos de contos de fada. É mau Disney encontrar pretexto em "obras-primas do passado" para transformá-las, inventar um final feliz, "simplificar" a psicologia das personagens, pintar o mundo cor-de-rosa, falsificar a história.
Deste ponto de vista, "O Corcunda" daria continuidade a "Pocahontas", que recebeu as mesmas críticas: muito politicamente correto, falso historicamente, fraco psicologicamente etc. E Goldberg se preocupa com o futuro, treme, imaginando que Disney passe a deturpar e empobrecer assim sistematicamente nosso patrimônio cultural. Receia em particular um projeto Disney de "Aída" em desenho animado.
É uma preocupação engraçada. O libreto de "Aída" foi redigido por Ghislanzoni sob encomenda de Ismail Pacha, que quis assim inaugurar o teatro da Ópera do Cairo. Pior do que ser escrito para ir ao encontro dos favores do público e fazer dinheiro (como se presume que seja o caso das produções de Disney), foi escrito para dar prazer a um paxá. Vocês podem gostar ou não da música de Verdi. Se gostam, saberão e acharão que "Aída" é -na evolução de Verdi- uma ópera importante, com mais fusão de orquestra e canto. Mas, de qualquer forma, toda a produção verdiana, no fim do século 19, é propriamente pop. Parapapám pám pám, parapapáaa..aám... e vai Radamés.
Quanto às personagens, difícil dizer que (com a exceção, para sermos generosos, de Amneris) sejam muito profundas. E, no que concerne à reconstituição histórica -apesar da ajuda do egiptólogo Mariette-, dá para notar que Ismail Pacha queria mais dar ao Cairo glamour parisiense ou milanês do que rever seus antepassados segundo uma problemática verosimilhança histórica. E daí? "Aída" é uma belíssima festa, que vejo e revejo com prazer, apesar de tudo isto. Por que não veríamos com prazer semelhante uma "Aída" de Disney, mesmo que seja com final feliz? O que se trataria de respeitar?
Voltemos ao romance de Victor Hugo que originou "O Corcunda" da Disney. É uma história que todos conhecem mais ou menos, pois passou a fazer parte da mitologia comum, mas que poucos leram. Por favor: não sintam nenhuma culpa. Maldito seja o curso obrigatório de "Romance Francês do Século 19", Universidade de Genebra, 1969, que me obrigou a ler "Notre Dame de Paris". Aposto que Goldberg nunca leu. Mas qual obra-prima?
As personagens de Victor Hugo certamente são mais sinistras do que suas versões Disney. Mas em nenhum caso são mais complexos ou elaborados psicologicamente. Elas são, aliás, só sinistras (com exceção de Esmeralda, que não é sinistra, mas também é oca como os sinos da catedral). Nesta altura, se quiserem parecer inteligentes, vocês deveriam objetar: mas o verdadeiro protagonista do romance de Victor Hugo não é Esmeralda, não é Quasímodo, mas é a própria catedral. E acrescentar: o espírito da Idade Média habita essas páginas imortais.
Aqui os críticos do "Corcunda" de Disney se tornam raivosos. Imaginem que as gárgulas de Notre Dame se tornam, no desenho, amigos de Quasímodo e ficam pulando por todo lado, dançando e cantando. Onde foi acabar a sombra misteriosa e apavorante, para onde foram os recantos da catedral dos tempos escuros? O filme de 1939, com Charles Laughton no papel de Quasímodo, ele sim respeitava os contrastes branco e preto, as sombras profundas da arquitetura gótica.
Exige-se fidelidade a Hugo. Ora, acontece que a Idade Média que ele pinta -ou melhor, desenha (decididamente em preto-e-branco)- é uma invenção romântica. Pior: Hugo e "Notre Dame de Paris" são substancialmente responsáveis pela difusão de um estereótipo da Idade Média como época da "Grande Noite", que dominou o século 19 e ainda domina parte do nosso, e que -descobre-se hoje- é uma divagação.
Fidelidade a quê, então?
Parece que criticar produtos culturais contemporâneos pela discrepância dos modelos passados nos quais se inspiram tornou-se prova de inteligência crítica e de sabedoria. Parece também que, como consequência, os ditos modelos se tornam "obras-primas", critérios de medida, só graças a sua distância de nós e a nossa providencial ignorância deles.
Tais críticas concernem evidentemente só aos produtos de massa. A dita alta cultura não tem este tipo de problema. Ninguém protesta porque no "Ulysses" de Joyce faltaria algum pedaço da "Odisséia". Mas muitos se indignam porque na "Odisséia" feita por Hollywood falta uma cena do original venerado.
Somos uma cultura da nostalgia e do mau humor combinados. A nostalgia justificando o mau humor. "O Corcunda de Notre Dame" seria ruim porque não respeita um original que na verdade só vale aos nossos olhos porque nos permite dizer que o bom humor de Disney, seu final feliz e as cores rosas são sinais de nossa decadência.
Na verdade, o "Corcunda" de Disney é mesmo um conto de fadas de nossos tempos. Esmeralda é perseguida por ser, digamos, escurinha, e Quasímodo, por ser disforme. Na versão Disney, a humanidade dos dois é reconhecida pelo amor e a amizade. As gárgulas de Notre Dame, no final do filme, até lembram que a diferença de que se trata é também aquela de quem emigra ou imigra. Acham politicamente correto demais, talvez até piegas? Vocês prefeririam um tom mais sombrio e finais mais próximos da realidade e longe de nossas esperanças? É legítimo. Há, aliás, filmes para todo gosto. Mas, por favor, não critiquem a Disney (ou a quem quer que seja) por desrespeitar "o original".

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