São Paulo, domingo, 7 de julho de 1996
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Verdadeira ou não, nova guerrilha gera incertezas no México

JORGE CASTAÑEDA

Então agora o México se vê diante de mais um levante armado, ou pelo menos foi o que se entendeu quando, na sexta-feira retrasada, um grupo armado autodenominado Exército Popular Revolucionário (EPR) desfilou em Águas Blancas, Estado de Guerrero, para rememorar o massacre de 17 camponeses ocorrido no ano passado.
Um contingente de entre 70 e 100 homens mascarados invadiu a prefeitura da cidade, carregando fuzis automáticos de assalto e usando uniformes militares limpos e asseados. Eles leram um manifesto radical, antiquado, mas lógico, dispararam uma salva de 17 tiros em homenagem aos mártires e desapareceram em direção a montanhas ou povoados vizinhos.
Tudo isso foi filmado e fotografado e, independentemente do que mais se possa vir a descobrir sobre o grupo guerrilheiro, é evidente que ele compartilha o mesmo apreço pela mídia e pelo espetacular dos zapatistas de Chiapas e de seu "subcomandante Marcos".
No mesmo dia, ocorreram incidentes menores na rodovia que liga Acapulco à Cidade do México, quando homens mascarados pararam automóveis e caminhões, distribuíram folhetos de propaganda e responderam com tiros quando foram atacados pela polícia.
Embora o final de semana e a manipulação hábil do mercado de ações tenham garantido a tranquilidade por alguns dias, a última coisa de que o México precisava, hoje, era mais um levante armado, em mais um Estado miserável com mais uma tradição de violência. Mas será que o que aconteceu foi realmente mais um levante guerrilheiro, como a ocupação indígena de quatro cidades em Chiapas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1º de janeiro de 1994?
Existem várias razões para se duvidar da autenticidade do novo grupo armado. Em primeiro lugar, o momento escolhido para seu aparecimento coincide espantosamente demais com uma série de outras ocorrências que vêm reintroduzindo elementos de instabilidade na política e nos mercados mexicanos. Elas abrangem desde novas acusações de corrupção feitas contra o governo do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari até incidentes violentos no Estado de Tabasco, no sul do país, vindos logo após mais uma leva de rumores absurdos acerca da hipotética renúncia do presidente Ernesto Zedillo em dezembro próximo.
Em segundo lugar, os equipamentos ostentados pelo EPR -armas, uniformes, botas etc- pareciam um pouco novos demais, um pouco elegantes demais.
Em terceiro, o suposto bando guerrilheiro ainda não fez nada, na realidade, senão anunciar sua presença ao mundo: não disparou um único tiro em combate, nem tentou emboscar as unidades do Exército onipresentes em Guerrero.
Nem sequer concedeu a entrevista coletiva à imprensa que anunciou na semana passada.
Finalmente, existem interesses demais na região que poderiam, presume-se, beneficiar-se da instabilidade. Esses interesses incluem o narcotráfico em Guerrero e em outras partes; o governo, que poderia justificar uma repressão forte no Estado, alegando razões de segurança nacional; o ex-governador deposto, tentando vingar-se de seus adversários, os adversários do ex-governador tentando vingar-se dele e grupos no interior do Partido Revolucionário Institucional interessados em enfraquecer ou pressionar o próprio Zedillo. Os motivos para a desconfiança são muitos e aumentam a cada momento.
Por outro lado, também há razões muito sólidas para acreditar que o EPR é de verdade. Guerrero é um Estado com tradição de guerrilhas rurais, tradição essa que data dos movimentos liderados por Genaro Vásquez e Lucio Cabañas no início da década de 70.
É muito possível que alguns de seus seguidores, ou familiares deles, estejam envolvidos com o grupo atual. Nos últimos anos, muitos relatos foram divulgados -inclusive neste espaço- sobre a presença de colunas armadas nas montanhas de Atoyac e Coyuca.
A proliferação de traficantes, sequestros e armas na região casa-se perfeitamente com a miséria e a marginalização da população rural do Estado.
Seria quase surpreendente se não houvesse movimento guerrilheiro ali. Se for autêntico, trata-se de um levante armado que estava esperando para acontecer.
E se demonstrar ser real, esse é um levante de fato assustador. Provavelmente será muito diferente do movimento zapatista, sob vários aspectos.
Os homens mascarados de Águas Blancas não são exatamente os guerrilheiros "mais gentis e bondosos" de Chiapas.
Embora tenham lido um texto no idioma náuatle, não são originários das comunidades indígenas; e mesmo que o "subcomandante Marcos" possua alguma experiência revolucionária, o tipo de grupos mexicanos tanto urbanos quanto rurais com os quais o EPR parece ter vínculos é muito mais duro do que aqueles de onde vêm mesmo os zapatistas mestiços.
Aqui não há vínculos com a igreja, não há exigências da comunidade indígena, nenhuma tentativa de conscientizar a sociedade civil e avançar ao lado dela em direção à democratização do México. Se não for uma guerrilha de mentirinha, o EPR deriva de um misto assustador de violência urbana e discurso extremista com a miséria e desolação rurais que assolam essa parte do México há décadas. Os riscos de uma guerra suja prolongada -como a dos anos 70- são inegáveis.
Possivelmente o mais agourento sinal em torno do caso seja a incerteza que o cerca. Quase não podemos concluir o que seria pior: um movimento guerrilheiro legítimo ou uma trama maligna maquinada por alguma facção no interior do sistema. Se a última hipótese for a verdadeira, talvez a ameaça à estabilidade mexicana seja maior.
Os recursos, a ousadia e a engenhosidade necessários para "inventar" um grupo guerrilheiro com mais de uma centena de homens armados, com um manifesto racional, a cumplicidade de uma cidade inteira e de vários grupos urbanos e um senso notável de sigilo e escolha do momento apropriado, tudo isso de certa forma mete mais medo do que algumas centenas de camponeses armados com fuzis que talvez nem saibam usar adequadamente.
Em um ensaio sobre a conjuntura atual das relações exteriores, este colunista procurou demonstrar que a divisão do México em duas economias, duas sociedades e até mesmo duas políticas -uma delas uma minoria moderna, viável, plugada nos Estados Unidos; outra a imensa maioria, deixada para trás e orientada para dentro do próprio país- garante que não haverá nenhuma reviravolta social no México, mas também constitui receita de instabilidade perpétua às margens dessa sociedade.
Cada levante local, esporádico, será contido; nenhum levante desse tipo pode ser evitado com antecedência. Por uma ou outra razão, a explosão em Guerrero parece fazer parte dessa lenta espiral descendente; pequena demais para fazer alguma diferença, importante demais para ser ignorada.

Tradução de Clara Allain

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