São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 1996
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Arte pela arte

OTAVIO FRIAS FILHO

Intrincada e opaca como é a administração pública, o que julgamos não é a gestão, mas o espetáculo. A estetização da política, que um crítico célebre discerniu no nazismo, foi um primeiro passo no rumo da "espetacularização" de todo o mundo moderno, com os símbolos ganhando vida própria à custa dos significados, que perdem importância.
Era oportuna, por isso, a exposição comparativa sobre o "discurso cênico" de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, acolhida pela reunião da SBPC que acontece nesta semana em São Paulo. Parece que os resultados do encontro não foram promissores; os jornais, ao menos, só mencionam as imagens de "esportista" e "intelectual", um tanto óbvias.
A imagem de Collor é muito mais forte, evidentemente, do que isso. Está cristalizada para sempre na nossa imaginação, aliás, enquanto a de FHC ainda não tomou forma definitiva. Collor compreendeu como ninguém que a política deixou de ser qualquer coisa além de espetáculo, que ela se tornou um ramo, por assim dizer, da publicidade.
Ele fez todos os papéis que havia (ecologista, devoto, playboy, piloto de caça, galã, messias, policial federal, ditador, macumbeiro, mártir), não houve um espaço de fantasia que não o interessasse, que ficasse intocado. Sua técnica era absolutista no sentido de que ele, o soberano, irradiava signos em cada gesto, cada camiseta.
Itamar Franco, que já era uma personalidade rarefeita, foi estraçalhado pela massa de sinais emitidos no período anterior. Compelido a negar essa herança transbordante, pela mecânica do pós-impeachment e por suas convicções pessoais, ele foi um não-presidente, situação de fato que se tornou pública com o consulado de FHC na Fazenda.
A ideologia e o inconsciente são governados por "leis" severas, provavelmente as mesmas. A imagem de FHC está presa numa contradição: sendo o consolidador da "agenda" de um Collor impedido (que já era a agenda mundial havia pelo menos dez anos), ele tem de aceitar e negar o precursor. É como um colono respeitável que vem depois do aventureiro.
O jornalista Elio Gaspari fez um recenseamento das vezes em que FHC usa a palavra "não". É que o estilo, ainda embrionário, tentando ainda se desvencilhar do passado, tem de ser adversativo, com admissões parciais, ressalvas e poréns -um estilo "complexo", como disse, com orgulho de prima-dona, o próprio artista.
Que todo político é um ator nunca foi novidade. José Celso, o diretor das "Bacantes", disse que queria conversar a sério com Maluf, "de palhaço para palhaço", como dois profissionais do mesmo mister. A novidade é que o estilo tomou o lugar do conteúdo, numa vitória final dos formalismos que consagra a política como "arte pela arte".

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