São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Os ensaios de Foucault

RENATO JANINE RIBEIRO

m ichel foucault pensava a leitura de modo diferente de Victor Goldschmidt. Para Goldschmidt, historiador da filosofia, só podem dizer-se de um autor os textos que ele assinou, autorizando que fossem publicados. Outras obras suas -e isso vale sobretudo para os póstumos- merecem, quando muito, atenção matizada, porque não sabemos se o autor as endossou por completo: podem ser rabiscos, rascunhos, ensaios repudiados. Já para Foucault essa divisão não cabia. Não pensava num autor dominando sua obra, mas num campo mais vasto, de que fazem parte todos os textos, até os falhos.
Essa distinção é fundamental. Vale a pena desenvolvê-la. Na primeira hipótese, que vem de Goldschmidt, o autor é uma espécie de artesão medieval, em busca não apenas da obra, mas da obra-prima. Um anseio de excelência o inspira, e faz que repudie boa parte do que fez. Ele pode ter com sua produção uma relação de descontentamento, até de ojeriza. "Ensaios" seriam, por definição, fracassados: o que se pretende é o definitivo. Mais importante do que escrever é assinar, mais sério do que tentar é concluir, mais decisivo do que ensaiar é arrematar. Só o acabado vale. Por sua vez, isto impõe, ao leitor, que só possa levar em conta o que foi assinado. O resto não conta. Isso, sem dúvida, porque se buscam as idéias enquanto aspiram a fazer sistema, a ser ou não verdadeiras.
Já na vertente aberta por Foucault (qualquer Foucault: o primeiro, da arqueologia, o segundo, da genealogia, ou o terceiro, da constituição do sujeito), o ensaio será a alma da filosofia. Esta é mais tentativa (e erro, isto é, também errância) do que encontro. O tratado vale menos que as tentativas, isto é, que as experiências. O possível pode interessar mais que o arrematado. Basta lembrar as páginas iniciais do "Uso dos Prazeres", elogiando a curiosidade, o ensaio e tudo o que nos põe em conflito com a identidade que supúnhamos ter. Isso, sem dúvida, porque se entendem as idéias como sintomas, e por trás delas se procuram os estilos de vida que podem constituir.
Com isso, a leitura assume uma importância inédita. Antes, ler seria escutar o que o autor havia assinado. Agora, porém, ler é problematizar, porque se pode mudar a ênfase dada pelo autor a cada uma de suas páginas. Podemos conferir um novo valor àquilo que ele desconsiderou. Penso, aliás, que o que distingue a leitura, desde que com Cortázar e Jauss ela alcançou um novo realce, está no direito e no fato de "variar a ênfase": não em fazer o autor dizer o que não disse, ou negar o que afirmou, mas em conferir relevo ao que ele lançou "en passant". Trata-se, em suma, de jogar com as entonações.
Foucault negava o conceito de ideologia, entendida como um discurso que dissimula ou esconde: mesmo o nazista diz "tudo" o que faz. Vale acrescentar: diz, mas com ênfases e articulações diferentes das de seu crítico. A tarefa do crítico não é expor o não-dito, o ocultado -que não existe. É, como fazia Foucault, simplesmente alterar a ênfase. Daí que nosso autor desse tanta importância ao que não é famoso ou exemplar (a "Vida dos Homens Infames", vol. 3, pág. 237), aos textos menores, a tudo o que significa, justamente, porque recebeu pouca atenção: sair do que é aceito se faz mudando-se o acento.
Enfim, para concluir este ponto: a tradição vê a autoria como atividade soberana e consciente do autor sobre a obra. Já a postura aberta por Foucault sai do primado da assinatura, abre lugar para a leitura e entende a escrita como problemática. Com isso, o autor deixa de ser quem melhor entende sua obra: ela se torna opaca até para ele.
Pois não é curioso que este homem que reduzia o primado da assinatura -isto é, para falar a linguagem de Freud, do ego- sobre a obra e procurava os rastros de outros grafismos ou caminhos, não é curioso que de seus escritos ele mesmo só tenha permitido publicar o que deu por terminado e assinado? Nunca será demais lamentar que o volume 4 da "História da Sexualidade" tenha ficado, e vá ficar, inédito; que outros inéditos só possam ser consultados sob condições estritas; em suma, que um critério goldschmidtiano da assinatura bloqueie um acesso foucaultiano aos manuscritos de Foucault. Mas, se isso fica a lastimar, temos pelo menos os quatro volumes dos "Dits et Écrits", três mil e tantas páginas somando entrevistas, intervenções, artigos publicados fora da França, transcrições de palestras... enfim, material para saciar qualquer vontade de saber.
É enorme a heterogeneidade desses 364 textos. Daí, cabe propor um modo de uso para o leitor, que se inspire no "Jogo da Amarelinha", de Cortázar: em vez de ler os "Dits et Écrits" de uma enfiada, ou sequer por inteiro, entrar neles de viés. Permito-me sugerir alguns roteiros:
1. Foucault e o Brasil. Não se trata apenas da compreensível vaidade do leitor brasileiro, que talvez saiba que foi aqui que Foucault expôs, ainda inédito, seu "As Palavras e as Coisas" (1966). Mas de ter um excelente indício da recepção (outra coisa, e bem mais rica, que uma influência) que ele teve entre nós, desde a entrevista que deu a Merquior e Rouanet em 1971 (vol. 2, pág. 157), sobre "A Arqueologia do Saber", passando pelo importante "A Verdade e as Formas Jurídicas" (vol. 2, pág. 538), curso ministrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio em 1973 e que saiu em livro aqui, mas até agora não tinha edição francesa, até "As Malhas do Poder" (vol. 4, pág. 182), conferências proferidas na Bahia, em 1976: umas dez entrevistas ou aulas ligadas ao Brasil.
2. Por extensão, a forma como Foucault teve impacto em tal ou qual país. Podemos citar a Itália: é para o "Corriere della Sera", em sua melhor fase, que ele concebe a idéia de reportagens escritas por filósofos, das quais escreve a série mais notável, sobre a revolução no Irã. Ou os Estados Unidos, que tardaram a conhecer seu pensamento, mas lhe deram importância significativa (como atesta o diálogo com Rabinow e Dreyfuss, no vol. 4, pág. 383). Ou, ainda, o Japão.
3. Os textos de intervenção política direta, quase imediata -mas que sempre se ligam a sua reflexão filosófica. Esses se concentram em alguns grandes eixos. O primeiro e mais evidente se refere aos presos. Em 1971, Foucault ajuda a criar o Grupo de Informação Prisões (GIP), que recusa duas coisas: primeira, o recorte entre presos políticos (os "nossos", a classe média, os dignos, castigados por delito de opinião ou de insurreição, mas não por meros crimes; que delinquiram por liberdade de convicção e não por necessidade material) e presos comuns (os "outros", os pobres, a quem perdoamos porque delinquiram por "necessidade", mas, por isso, ficam no plano da quase-animalidade).
Em segundo lugar, e por isso mesmo, o GIP se nega a ser porta-voz, ou "voz dos que não têm voz" (para usar aqui uma expressão célebre da CNBB naquela época, que Roberto Romano criticou em seu "Brasil, Igreja Contra Estado"): o que fará é apenas "facilitar" a fala dos silenciados, mas sem querer ser a consciência deles. De terceira pessoa desprezada, os presos devem ter os meios de se tornar primeira pessoa. E, tão logo se consolida um Comitê de Ação dos Presos, o GIP se extingue.
Um dos resultados dessa militância, dirá mais tarde, são certas idéias de "Vigiar e Punir", livro que se nega a ser uma teoria "de fora" sobre o mundo dos presos.
Esse é um risco em que poderia incorrer, se continuasse na trilha de "As Palavras e as Coisas", que tendia ao sobrevôo das práticas e discursos dos outros.
Outro eixo político é o do Irã, entre setembro de 1978 e o começo de 1979. Foucault mostra simpatia pelos xiitas (que, ao contrário dos sunitas, dominantes no mundo islâmico, têm longa tradição de rebeldia e maior engate popular) e esperança numa nova "espiritualidade política". Isso o levou a ser muito criticado, depois que Khomeini iniciou o terro de Teerã; mas é inegável que Foucault apresentara seus sentimentos com inúmeras reservas. Ele não vislumbrou o que seria o fundamentalismo, é verdade. Mas o que exprimiu foi antes de mais nada sua aversão ao eurocentrismo, uma espécie de prudência científica tornada valor ético, fazendo-o negar ao Ocidente o direito de julgar outras experiências do mundo. Aqui convergem sua epistemologia e sua ética.
4. Mais um roteiro: o do direito. No Ocidente, os regimes de verdade têm muito a ver com as formas jurídicas. Mesmo George Huppert, que criticará acerbamente algumas teses de Foucault, concordaria que é nos meios judiciários que se gestam procedimentos de constituição do que chamamos "verdade". Aqui, merecem destaque o curso sobre "A Verdade e as Formas Jurídicas" e o diálogo "Sobre a Justiça Popular" -uma discussão com os maoístas Benny Lévy e André Glucksmann, em 1972.
5. A interface com a literatura é outra constante nesse pensador que analisa Raymond Roussel e Bataille, comenta Baudelaire e pensa com Borges. Isso para não falar na interface com a história -de que é bom exemplo a discussão sobre "Vigiar e Punir" (1975). Ao sair esse livro, o historiador Jacques Léonard tece uma série de críticas, às quais Foucault responde (vol. 4, pág. 10) e que culminam numa mesa-redonda com os dois e Michelle Perrot (pág. 20). A resposta de Foucault é utilíssima para se entender como ele pensava seu trabalho, inspirador tanto para a filosofia quanto para a história.
Enfim, esses são apenas alguns roteiros, entre outros. Afinal, o que há de comum entre esses textos é não terem saído na França na qualidade de livros de Foucault. Deles, dois pelo menos saíram no Brasil como livro, a "Microfísica do Poder" e "A Verdade e as Formas Jurídicas". Alguns textos, revisados, se tornaram parte da "História da Sexualidade". Outro, abandonado, foi o primeiro prefácio à "História da Loucura". Além disso, há entrevistas publicadas do Japão até a Bahia, e que antes era difícil encontrar. Talvez o texto mais curioso seja o "Filósofo Mascarado"'(vol. 4, pág. 104), uma entrevista que Foucault deu a "Le Monde", em 1980, sob a condição de não revelarem seu nome -e que me parece aludir, em parte, às perguntas que as revistas cultas do século 18 dirigiam aos pensadores: um pouco adiante, ao comentar "O Que É o Iluminismo?", de Kant (pág. 562), ele imagina que um jornal indagasse hoje "o que é a filosofia moderna?". Cada um, como o leitor de Cortázar, fará sua leitura dessa obra e, assim, seu livro pessoal, como se fosse uma carta que escolheu receber de Foucault.
*
Mas o ponto que gostaria de desenvolver diz respeito ao papel do intelectual. Como aqui são muitas as intervenções pontuais, atestam bem o que Foucault entendia por papel público do intelectual. Se no "Filósofo Mascarado" ele critica os meios de comunicação, é certo que soube lidar bastante bem com eles. Contudo, convém referir alguns textos em particular.
Em 1972, com um mês de intervalo, Foucault participa de dois diálogos (1). Em fevereiro, reúne-se com dois maoístas para discutir a justiça popular; é quando condena a forma mesma do tribunal, por fingir uma objetividade que não existe, e paradoxalmente parece defender uma justiça popular feita com as próprias mãos, contra qualquer aparelho que na verdade serviria para submeter as massas a um poder a elas externo. Esse artigo, se ficou superado em seu radicalismo, conserva-se atual e rico na crítica ao Poder Judiciário -o mesmo cuja independência ele ironiza, ao comentar que "Montesquieu e os arquitetos de Brasília" erraram ao supor três poderes autônomos (vol. 4, pág. 755)...
Um mês depois Foucault debate, com Deleuze, "Os Intelectuais e o Poder". É certo que Deleuze não dá, ao contrário dele, um aval ao que seriam "o proletariado", "a classe operária", "as massas" (termo tipicamente maoísta) e os partidos a elas ligadas (isto é, os maoístas). Nesses pontos, Foucault se mostra quase um companheiro de viagem dos grupúsculos que, depois da "traição" do Partido Comunista Francês à causa revolucionária em maio de 1968, tentavam construir um "genuíno" partido das massas (2).
Mesmo assim, as pistas lançadas pelo encontro dos maiores filósofos franceses são notáveis. Repudiam o modelo que fazia do intelectual a consciência da classe operária. Entendem que a relação entre o intelectual e seus "outros" (que Foucault chama de "as massas", e Deleuze, de "as pessoas") não passa mais pela representação, mas pela idéia de que uma teoria é uma "caixa de ferramentas", servindo para determinadas coisas (imagem que os dois filósofos usarão mais de uma vez).
Aqui está talvez o mais curioso do delegado de Foucault. Ele contribuiu decisivamente para constituir uma esquerda radical e não-comunista, abrindo uma nova relação dos intelectuais entre si e deles com as massas, a começar pelos presos comuns. Foi muito criticado pela esquerda tradicional, dos comunistas a Sartre. Mas o melhor sinal de seu esquerdismo é a atualidade de seu pensamento, nos tempos atuais de um velho liberalismo requentado. Seu trabalho essencial consistiu em mostrar que, se o político estava, por toda a parte, no social, era possível, de qualquer parte do social, fazer política.
Em seu diálogo com Deleuze, Foucault dizia que as massas sabem muito bem o que acontece e o que elas querem. Nosso papel não é ensinar a elas, nem falar em seu nome, mas ajudar a explodir os ferrolhos que obstruem seu discurso, e com ele sua ação. Essas palavras permitem pensar muita coisa: o papel político do cientista ou do engenheiro, a presença política de massas que não sejam mais objeto de nosso trato paternal.
Mas, acima de tudo, uma nova política se delineia, nos espaços que antes não eram considerados dignos dela. Talvez por isso seja tão difícil, para quem se abeberou em Foucault, aceitar certas teses de Hannah Arendt (3) sobre o político, porque ainda o concebem como um espaço à parte do social, por sua vez remetido à carência. Há "mil poderezinhos", o político está em toda a parte e são políticas lutas das mais variadas. Não é por acaso que, sondado para apoiar de público a esquerda nas eleições de 1978, Foucault responde: "Se foi fecundo o trabalho realizado nos últimos 15 anos, foi na medida em que tentamos abrir nossos olhos, apagando a grade política tradional que os partidos e os jogos eleitorais nos impunham. Não vamos traduzir, agora, este trabalho em termos eleitorais" (vol. 3, pág. 507).

NOTAS
1. As entrevistas apareceram em português na "Microfísica do Poder". Estão no vol. 2 de "Dits et Écrits", págs. 306 e 340.
2. Sobre o que se tornou inatual nesta conversa, cf. nossa comunicação ("Les Intellectuels et le Pouvoir Revisted") nos Encontros Internacionais Gilles Deleuze, promovidos no Rio de Janeiro pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, 11 de junho de 1996.
3. Refiro-me a seu "Da Revolução" (Ática).

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