São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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O último clássico da antropologia britânica

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

A tradução do principal trabalho de Edmund Leach, "Sistemas Políticos da Alta Birmânia", vem se juntar às duas outras monografias clássicas já disponíveis em português, "Os Argonautas do Pacífico Ocidental", de Malinowski, e "Os Nuer", de Evans-Pritchard. Esses livros, publicados originalmente em 1922 ("Argonautas"), 1940 ("Nuer") e 1954 ("Sistemas Políticos"), marcam os três momentos mais significativos da chamada "antropologia social britânica", ou seja, do modelo etnográfico e analítico criado por Malinowski e continuado por seus discípulos, dos quais os mais brilhantes foram, sem dúvida, Evans-Pritchard e Leach.
Se "Os Argonautas" é o livro que inaugura essa tradição, permanecendo, sob vários aspectos, paradigmático, "Os Nuer" é seu momento de maior elegância estilística e de máxima abstração analítica. "Sistemas Políticos", em contrapartida, é a obra que encerra polêmica e anarquicamente a idade de ouro da antropologia britânica. Para evocarmos os dois pólos entre que oscilam os Kachin de Leach, poderíamos dizer que "Os Nuer" são a fase "gumsa", "Sistemas Políticos", a fase "gumlao" da antropologia inglesa. Retomando, por um lado, a inspiração original malinowskiana, resolutamente individualista, utilitarista e cética, que nos anos 30 e 40 havia recuado perante a influência do paradigma durkheimiano, Leach irá, por outro lado, demolir não apenas as construções idealizadas da geração anterior, marcada pelo normativismo de Radcliffe-Brown, mas ainda solapar os próprios fundamentos do modelo malinowskiano. Esses fundamentos consistiam essencialmente em: (1) um fechamento analítico sobre a sincronia, e o consequente congelamento histórico das realidades observadas; (2) o privilégio exclusivo da observação participante e da esfera de interações que ela permitia abarcar; (3) a pressuposição de um equilíbrio estrutural estável e de uma harmonia funcional generalizada; (4) uma reificação do objeto segundo um modelo "tribal" que tomava os sistemas sociais como totalidades discretas, mônadas definidas pela coincidência ideal entre uma população etnicamente distinta, uma cultura particular, e um aparato institucional autônomo. Contra isso, Leach lançará mão de um método descritivo que combina observação etnográfica, reconstrução histórica e análise situacional, para concluir pelo desequilíbrio estrutural do sistema sociopolítico kachin, por sua oscilação histórica entre tipos-ideais antagônicos, e pelo papel constitutivo das estratégias individuais de poder como gerador dessa oscilação. Rito e mito aparecem como dispositivos ideológicos de afirmação de uma ordem ideal constantemente negada pela prática; a estrutura social, como um sistema de representações necessariamente falseadas sobre a distribuição do poder político; e os modelos dos antropólogos, como esquematismos que só conseguem organizar a descrição na medida em que ocultam a ambiguidade e fluidez das categorias culturais nativas.
A visão da "sociedade primitiva" que emergia das monografias funcionalistas anteriores será, portanto, definitivamente abalada pelo estudo de Leach, quando este descreve uma realidade bem mais complexa que as pequenas sociedades dos Mares do Sul, onde os vastos circuitos de troca cerimonial (tal como o "kula" estudado por Malinowski) antes separavam e definiam que confundiam as entidades sociais assim articuladas, ou que os grandes organismos segmentares africanos (tal o sistema linhageiro dos Nuer estudado por Evans-Pritchard), verdadeiras máquinas de estabelecer fronteiras sempre nítidas, ainda que móveis e relativas. O que Leach fez foi, sobretudo, mudar a "imagem típica" da sociedade estudada pela antropologia. Seus "Kachin", conjunto multilingue e multiétnico, situado na encruzilhada de múltiplas fronteiras, processos e sistemas -Birmânia, China e Índia; império britânico, monarquia birmanesa e principados transnacionais chan; organização territorial "feudal" e sistema linhageiro "tribal"; agricultura intensiva dos vales e agricultura itinerante das montanhas; sistema político hierárquico baseado no tributo (sistema "gumsa") e sistema "democrático" baseado na troca matrimonial (o sistema gumlao)-, eram na verdade uma categoria sociopolítica fluida gerada por um sistema aberto, que articulava identidades coletivas em perpétuo devir; um sistema regional definido pela não-coincidência entre língua, cultura, organização social e forma política, cujo princípio de funcionamento dependia precisamente da transformabilidade e permeabilidade de suas partes componentes.
A excelente introdução de Lygia Sigaud faz uma análise da trajetória de Leach (1910 1989), indicando o conjunto de circunstâncias que permitiu a este membro semidissidente da burguesia industrial inglesa, instalando-se em um meio intelectual dominado por emigrados, por egressos das colônias britânicas, mulheres, e homens de origem social mais modesta que a sua, tornar-se uma espécie de "enfant terrible" vitalício e de rebelde oficial da antropologia britânica por quase quarenta anos. Leach foi, em mais de um sentido, o mais inglês dos antropólogos "britânicos"; não só por sua origem de classe, mas por encarnar com brio desabusado a tradição epistemológica distintiva de seu país, com sua mistura de ceticismo, nominalismo e individualismo utilitarista, e sua desconfiança mesclada de interesse frente às grandes abstrações "continentais" (como o estruturalismo).
Para um rebelde, Leach até que foi muito popular; outros rebeldes brilhantes, que escreveram trabalhos igualmente revolucionários, como Gregory Bateson, não foram tão bem assimilados pelo sistema (quando se vai, aliás, traduzir o "Naven" de Bateson?). Se Leach nunca chegou a ocupar posições de real poder acadêmico, sua voz sempre esteve entre as mais ouvidas no establishment antropológico mundial. Estabelecido em Cambridge, ele ali manteve uma relação de amizade e de polêmica com seu colega Meyer Fortes, a quem não poucas vezes criticou em artigos devastadores. Fortes (judeu e sul-africano), que realizou uma longa e exemplar pesquisa de campo entre os Tallensi da África ocidental, deixando uma extensa obra, foi o discípulo mais fiel de Radcliffe-Brown. Sua influência teórica foi profunda, mas muito menos evidente que a de Leach, cujo brilho intelectual e poder social ofuscaram, quando não oprimiram, Fortes durante a longa convivência de ambos em Cambridge. Hoje é possível ver que o ostracismo a que se condenou Fortes nas últimas décadas, e que se deve em grande medida aos ataques de Leach, foi bastante injusto, e que este é um autor que precisa ser recuperado, pois suas contribuições substantivas à antropologia não foram menos importantes que as contribuições essencialmente críticas e céticas de Leach, as quais, tornadas normas, correm o risco de perderem o gume que lhes dava razão de ser.
A obra de Leach foi irregular; seu talento se mostrava melhor no artigo, e "Sistemas Políticos" é mais um ensaio teórico avantajado que uma etnografia descritiva clássica. Sua outra pesquisa de campo intensiva, no Sri Lanka, gerou um livro importante ("Pul Eliya"), mas tedioso, coroado ademais por uma agressiva conclusão "materialista" que não faz jus à sua criatividade. Leach se tornou conhecido academicamente em 1951, com um artigo onde criticava e corrigia a interpretação que Lévi-Strauss apresentara nas "Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) sobre o sistema de aliança dos Kachin. Desde então, suas relações com o antropólogo francês foram tumultuadas; crítico do estruturalismo, Leach foi ao mesmo tempo seu principal intérprete junto ao público antropológico anglo-saxão, mas sua versão do pensamento de Lévi-Strauss manifesta uma profunda e talvez deliberada incompreensão, que subjaz à maioria das interpretações bizarras que a antropologia anglófona veio depois a fazer do estruturalismo. Suspeito que Leach assumiu esse papel de divulgador não tanto por admirar (embora esse fosse o caso) a obra de Lévi-Strauss, mas principal e simplesmente para irritar seus colegas fiéis à escolástica radcliffe-browniana ou a um empirismo burocrático. Seja como for, suas contribuições à teoria estruturalista da aliança de casamento contam, juntamente com "Sistemas Políticos", entre os pontos altos de sua carreira.
O que Leach propunha nos idos de 1954 como contra-objeto para a tradição antropológica tornou-se, hoje, a norma geral do objeto. A insistência com que a antropologia contemporânea tem investido contra a representação de sociedade primitiva como mônada em homeostase eco-sócio-ideológica, enfatizando a maior realidade de sistemas regionais cultural e politicamente heterogêneos, marcados por um desequilíbrio e transformação intrínsecos, dá testemunho da atualidade teórica dessa monografia. Curiosamente, ela não costuma ser reivindicada pelos arautos do fim do universo social tradicional, composto por isolados ontológicos do tipo "tribo" ou "estado-nação", nem é lembrado quando se decreta a falência dos modelos totalizantes de explicação sociológica, ou quando se critica o objetivismo formalista em nome das estratégias e da "prática", ou ainda quando se atacam os mestres da "autoridade etnográfica". A leitura do livro de Leach leva-nos tanto a constatar sua atualidade como a concluir que não há grande novidade por trás do barulho recente em torno da "globalização", e a perceber que Leach já cozinhava sua versão do "fim das grandes narrativas" muito antes que este fosse oficializado. A publicação de "Sistemas Políticos" deve ser saudada, sobretudo, por resgatar de um crescente esquecimento o passado próximo de nossa disciplina, e em particular um estilo antropológico que foi sufocado -inclusive em seu país de origem- pelo maneirismo desconstrutivista americano e seus especialistas em arrombar portas abertas.

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