São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Volta ao passado

CELSO FREDERICO

A reestruturação produtiva é o tema do momento que vem desafiando a imaginação da esquerda, obrigando-a a substituir o discurso politicista pela reflexão cautelosa sobre as peripécias do capital. No último número da revista do PT ("Teoria & Debate") há uma mesa-redonda sobre o assunto; a Editora Cortez deverá lançar brevemente a antologia "Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva", organizada por Francisco J. Teixeira e Manfredo de Oliveira. É nesse movimento de volta à economia política que se insere esta coletânea, "Crise e Trabalho no Brasil", envolvendo a participação de 12 autores.
Todos eles são professores da Unicamp (Universidade de Campinas), ligados ao Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho. Além de trabalharem em equipe, guiados pelos mesmos princípios e objetivos, escrevem de forma padronizada, num estilo homogêneo que os aproxima tanto, a ponto de parecer tratar-se de um único autor. O "economês", felizmente, não está presente na escrita desses "scholars" contidos: a linguagem impessoal e fria, o raciocínio linear, os dados arrolados em sua irremovível e desoladora veracidade aos poucos vão envolvendo o leitor e dissipando a crosta ideológica dos enganos propagados diariamente.
Basta ligar a televisão para vermos os comentaristas destilando críticas ao "custo Brasil" e apontando como responsáveis o Estado e os privilégios corporativos. Trata-se de dois pontos complexos para uma esquerda acuada, jogando na defensiva. A identificação entre estatização e socialização levou ao colapso do "socialismo real". No Brasil, a luta contra a ditadura fez nascer uma esquerda impregnada de idéias politicistas, que via o Estado (confundido com o regime) como inimigo principal. "De costas para o Estado e de frente para a sociedade civil": quem se aferrou a este slogan não tem agora como disfarçar a perplexidade perante a ofensiva liberal.
Por outro lado, a crítica ao corporativismo atinge duplamente a esquerda: quer organizar a sociedade civil, mas seu poder de fogo concentra-se basicamente no setor público da economia; sua atuação deveria visar o interesse geral, e não o de corporações organizadas.
Uma por uma, as afirmações enganosas em voga são demolidas pelos dados apresentados. O Estado não é uma barreira para o desenvolvimento: foi graças a ele que o país pôde crescer de forma vertiginosa e sair da crise a que o liberalismo o conduzira em 1929. "A liberalização dos mercados", dizem os organizadores, "significa simples volta ao passado que, por suas mazelas sociais, foi repudiado pela sociedade". O Japão e os tigres asiáticos foram países que souberam preservar a capacidade de intervenção do Estado na economia e, por isso mesmo, obtiveram nos últimos tempos um espantoso desenvolvimento.
Quanto à flexibilização do mercado de trabalho, a nossa situação em nada se parece com a dos países europeus, nos quais a classe operária se beneficiou das conquistas obtidas nas lutas sindicais. O mercado de trabalho no Brasil não tem a rigidez que querem lhe atribuir. Como os custos de demissão são baixos e inexistem contratos coletivos de trabalho e legislação protetora, os índices de demissão são altíssimos. Os trabalhadores, assim, flutuam entre o emprego e o desemprego ao sabor dos interesses da empresa. O quadro de trabalhadores estáveis é mínimo: não há nenhum interesse em investir na formação profissional desses operários "flexíveis" -exigência posta pela terceira revolução industrial em curso-, que ganham pouco e vivem permanentemente trocando de emprego e ofício. Os dados do Ministério do Trabalho informam que o índice de demissão atinge 50% ao ano e que de cada três trabalhadores com registro formal apenas um permanece mais de três anos na mesma empresa.
Outra falácia é a afirmação de que "o Brasil é o campeão dos encargos sociais". Os países desenvolvidos (com a exceção da Inglaterra) vêm aumentando a participação dos encargos sociais no custo do trabalho. O Canadá, por exemplo, entre 1980 e 1992 conheceu uma elevação de quase 50%. Os itens arrolados como integrantes dos chamados "encargos sociais" nas estatísticas brasileiras incluem tanto os benefícios indiretos ao trabalhador como recursos destinados ao financiamento de atividades sociais das instituições governamentais e empresariais. Separando o joio do trigo, o que retorna para o trabalhador é apenas 25% da folha de pagamento. No caso da indústria manufatureira, o peso dos encargos é de 20% (percentual menor do que os vigentes na Itália, Bélgica, França e Espanha, e iguais aos da Alemanha, Estados Unidos, Portugal e Grécia).
O custo do trabalho no Brasil não é fator prejudicial à competitividade de nossos produtos no exterior. Nos países desenvolvidos, os ganhos das grandes corporações são resultantes de alterações cambiais e de movimentações financeiras de âmbito internacional, não expressando diretamente os custos salariais. E lá o gasto com o trabalho assalariado na indústria representa 30% da produção (contra 20% no Brasil).
Quando se fala em reduzir encargos sociais, o que se pretende, em verdade, é a redução do custo horário da mão-de-obra: um dos mais baixos do mundo, para uma jornada de trabalho semanal que é uma das maiores. Essa redução incidiria nos direitos trabalhistas (13º salário, férias remuneradas etc). Mas, mesmo computando todos esses itens de rendimentos adicionais, a força de trabalho continua num patamar baixíssimo, aquém dos tão decantados tigres asiáticos: reduzi-la ainda mais traria consequências sociais terríveis e desdobramentos imprevisíveis para o próprio funcionamento da economia.
A baixa competitividade econômica da América Latina não se explica pelo custo do trabalho, mas pelos baixos níveis de produtividade, como demonstram pesquisas da OIT (Organização Internacional do Trabalho). E, para melhorar a produtividade, tornam-se necessários investimentos governamentais na infra-estrutura, em transporte, alterações na política monetária e cambial, verbas para a educação etc.
O receituário neoliberal conduz a um beco sem saída: "Como mostra a história recente da Argentina e do México, o sacrifício de hoje não leva a benefícios futuros, mas somente a... mais sacrifícios".
Contra a mentira, cuja repetição parece forjar a verdade, e os impasses do politicismo responsáveis pela apatia e a perplexidade da esquerda, a economia política ressurge para desenhar a anatomia da sociedade onde os homens atuam, desfazendo os equívocos e apontando os caminhos do possível e do necessário.
Há um cuidado especial em todos os textos para não extrair ilações políticas imediatistas dos dados econômicos. Mas o leitor atento não deixa de notar dois temas implícitos que acompanham o raciocínio desses economistas contidos e pragmáticos:
1. As breves alusões à necessidade de uma "alternativa nacional e popular de desenvolvimento" repõem no centro das discussões a "questão nacional", tema que alguns segmentos da esquerda interpretam como forma dissimulada de atrelamento do proletariado à hegemonia burguesa e que os teóricos da globalização, constatando o enfraquecimento dos Estados nacionais, consideram definitivamente sepultada;
2. O antídoto à glorificação do mercado estaria na regulação pública da vida econômica, o que, evidentemente, passa por um rearranjo entre as classes sociais e o poder estatal. Uma iniciativa considerada importante seria a experiência das câmaras setoriais: fator de democratização das relações de trabalho entre os setores organizados da economia e germe de uma nova política industrial. Mas esse caminho não levaria à domesticação da classe operária e à neutralização de seu potencial anticapitalista?
São temas polêmicos que acompanham o conjunto de dados apresentados pelos autores. Pode-se discordar das conclusões políticas: o que não é válido é o recurso fácil da ideologização apressada, um velho vício do politicismo que se recusa a descer ao subterrâneo da economia.

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