São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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O jornalista da abolição

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Com a edição dessa coletânea de artigos de imprensa de José do Patrocínio(1854-1905), preenche-se uma lacuna na bibliografia sobre a abolição. De fato, apesar de ter sido um dos mais combativos e sensíveis emancipacionistas, Patrocínio ainda não mereceu a devida atenção. Claro, alguns livros, teses e dissertações chegaram a mapear aspectos de sua vida e de seu pensamento. Mas o empenho, até agora, não foi suficiente para tirar o grande tribuno e jornalista do ostracismo.
A Biblioteca Nacional não se fez de rogada. Sua edição de "A Campanha Abolicionista" é caprichadíssima. Organizada e comentada por Marcus Venicio Ribeiro, reúne os principais libelos antiescravistas de Patrocínio. Vem acompanhada de uma sugestiva introdução de José Murilo de Carvalho, autor de importantes estudos sobre a abolição e a política imperial brasileira. Como atração extra, o volume traz ainda uma bela seleção de ilustrações feitas pelo incrível Ângelo Agostini, amigo de Patrocínio e proprietário da "Revista Ilustrada", a "Revista Vermelha" que tanto incomodava os escravocratas.
O mínimo que se poderia dizer da coletânea é que ela mostra Patrocínio por inteiro. Apaixonado, vibrante, cortado pelos conflitos de sua biografia (era mulato, filho de mãe escrava e pai escravista) e pelas contradições da realidade imperial. O leitor julgue por si: não era mesmo fácil ser abolicionista naquela sociedade que queria ser liberal, parlamentarista, independente e moderna mas convivia sem muitos atritos com a escravidão. Havia muita opacidade e, seguramente, faltavam bases sociais organizadas para calçar qualquer reformismo mais forte. Não podem surpreender os ziguezagues do movimento e de seus ativistas: todos eram, de algum modo, confundidos pela modorra asfixiante do regime escravista.
A abolição espelhou o ritmo da história nacional, afirmando-se como um processo lento, arrastado, subsumido a vários acordos e protelações, sem forças para se completar. Foi, em poucas palavras, uma espécie de prolongamento do passado, que se colou funcionalmente às estruturas e mentalidades da nova sociedade que surgiria a partir das últimas décadas do século 19.
Compreende-se que assim tenha sido. Afinal, a sociedade na qual corria o abolicionismo havia sido toda moldada pela escravidão: era pouco "orgânica" e não estava qualificada para objetivar sujeitos políticos autônomos. Nem mesmo conseguiria soltar-se direito dos condicionantes da empresa colonial e das amarras de um sistema político vocacionado para restringir a participação. Na verdade, a sociedade pulsava de costas para os centros políticos, entregue a um senhoriato cioso da soberania de seus latifúndios e de seus "clãs parentais", como diria Oliveira Vianna.
Os abolicionistas perceberão com clareza o círculo vicioso em que se encontravam. A escravidão, dirá Nabuco em "O Abolicionismo" (1883), sugava as energias da sociedade e fazia do sistema representativo "um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal", verdadeira "paródia de democracia", no qual travavam-se tão-somente "combates com sombras". A denúncia será idêntica em Patrocínio: com a escravidão, dirá ele em 1885, "morreram cidades, morreram indústrias prosperamente iniciadas, o povo perdeu o amor ao trabalho, singularizou-se a produção, que prometia pluralizar-se, sobresteve-se na decretação de princípios civilizadores". Se era assim, como acabar com ela?
Nesse ambiente, a massa escrava estava praticamente reduzida à impotência política e se convertia em presa dos mecanismos de cooptação e favor engendrados pelo sistema societário da escravidão. É por isso que os abolicionistas não se cansarão de chamar a Monarquia para o campo de batalha: impossibilitados de contar com suportes efetivos "de baixo", precisavam tentar a reforma "por cima".
Em seus textos, Patrocínio seguirá à risca a tática, interpelando com veemência o Imperador. "Não sente Sua Majestade alguma coisa de extraordinário nesse momento?", perguntará em junho de 1882. "Quando fender-se o amaldiçoado solo árido, que tem bebido por três séculos o suor e o pranto de milhões de homens, não teme Sua Majestade que uma das ruínas seja o seu trono?". O repto a Pedro II oscilará sempre entre a conclamação e a ameaça. "Só o imperador pode querer, sem morrer", escreverá. "Ou o Imperador coloca-se francamente à frente do movimento abolicionista, ou terá o desprazer de ver os seus últimos dias entenebrecidos pelo mais assombroso acontecimento da nossa história".
Daí também a distância que procurarão manter dos partidos e dos temas imediatamente políticos. O abolicionismo apresentava-se como um movimento suprapartidário, dedicado a desagregar os partidos imperiais e a articular os integrantes progressistas de todos eles. Como Patrocínio dirá em 1884, "a propaganda abolicionista não se parece nada com o passado partidário deste país, não tem interesses pessoais mas as idéias e só as idéias, a pátria e só a pátria". Às vésperas do Treze de Maio, será ainda mais categórico, afirmando que os abolicionistas consideravam "indébita a intervenção da política abstrata" naquela hora em que se tratava de "decretar o primeiro direito do homem, a sua liberdade pessoal".
O momento, em suma, não era dos partidos, mas dos escravos. "Ora -concluirá-, se é legítimo que o republicano anteponha a forma de Governo à libertação de seus concidadãos escravizados, é também natural que o monarquista o faça e, por consequência, o esquecimento do abolicionismo da parte do primeiro era igualmente natural da parte do segundo".
A escravidão, além do mais, era um fato global e só seria eliminada por uma reforma global. Nabuco delineará um abrangente plano de reformas estruturais, que não sairá do papel. Patrocínio falará sempre em "substituição total e em globo da máquina-escravo pelo trabalhador livre". Ambos chegarão, no decorrer dos anos 1880, a um mesmo denominador comum: para ser consequente, o movimento não podia limitar-se à batalha pela extinção pura e simples do trabalho escravo.
"É preciso destruir a obra da escravidão", dirá Nabuco na campanha eleitoral de 1884. A grande "reforma social" almejada pelo abolicionismo iniciar-se-ia com a libertação dos escravos mas iria forçosamente bem além dela, dando vazão a uma nova sociedade. O decisivo, portanto, não era alterar a forma do governo, mas responsabilizar o vértice estatal, convocá-lo para erradicar a obra da escravidão. "O socialismo do Estado, largo, franco, sem hesitações -escreverá Patrocínio logo após o Treze de Maio-, é o único meio de movimentar esta grande máquina "que é o país", enferrujada pela escravidão".
Fugindo do "politicismo" dos republicanos, Patrocínio ficará cara a cara com as entranhas do sistema escravista. Embora dando, como Nabuco, a devida ênfase ao Parlamento e à Coroa, não abrirá mão da mobilização da opinião pública e da dignidade negra. Aliás, jogou-se por inteiro nessa peleja ao longo da década de 80. O povo de pobres, ingênuos e escravos não chegou a tomar as praças para exigir a emancipação, mas em compensação a campanha também não será mais puramente parlamentar.
Nabuco aspirará, meio ingenuamente, à abolição com monarquia. Patrocínio jamais chegará a ser monarquista, mas não levará à frente as simpatias que chegou a nutrir pela república. Será mesmo abertamente hostilizado pela nova ordem de 1889. Tanto ele quanto Nabuco terminarão seus dias bem distantes da política militante ou do calor das grandes causas: Nabuco (cuja morte se dá em 1910) mergulhará em profundo sonho nostálgico-introspectivo e se agarrará ao "patriotismo" do serviço diplomático; Patrocínio ficará despojado de qualquer eixo político e morrerá, em 1905, pobre, doente e abandonado. As tragédias e sinuosidades pessoais andarão de mãos dadas com a inconsequência prática e operacional do Treze de Maio.
A publicação dos artigos de José do Patrocínio concede ao leitor a possibilidade de recuperar o teor e o percurso da luta que viabilizou o abolicionismo em 1888, mas que não teve forças para impor um diverso padrão societal, no qual os ex-escravos, ao lado dos pobres em geral, fossem promovidos efetivamente a cidadãos. O caráter incompleto da abolição, somado à moderação igualmente não-revolucionária da república, desarmou o liberalismo generoso que crescera com a ascensão do abolicionismo, impossibilitando ao mesmo tempo a inclusão política das massas e o fortalecimento da sociedade civil. Também por isso, comprometeu muito da história brasileira a partir de então, limitando a democracia e problematizando a ordenação de uma sociedade mais fraterna e menos desigual.

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