São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Uma questão não resolvida

LEONARDO MELLO E SILVA

No momento em que se discute a possibilidade de deslocamento do pólo industrial do ABCD para outras cidades, ao estilo da estratégia dos "greenfields", a leitura deste livro é oportuna e instigante. Ele narra meio século de história do movimento operário do ABC pelo relacionamento entre os sindicatos e suas lideranças, de um lado, e as principais empresas ali instaladas e o Estado, de outro.
Um dos méritos do trabalho de French é a consideração não apenas do ABC mas também de São Paulo como contraponto à mobilização operária naquela região. Essa contextualização é essencial para o desenvolvimento dos argumentos que discutem a relação Estado/leis trabalhistas/organização dos trabalhadores.
A origem do trabalho está na percepção da insuficiência das explicações acadêmicas disponíveis sobre o significado do populismo. Sem cair nas generalizações, que o autor tanto critica em colegas eminentes daqui e de fora, o texto retoma uma saudável tradição de interpretação e crítica que busca construir uma explicação de conjunto para a história brasileira. Quanto ao populismo, o aspecto inovador está na abordagem a partir do movimento operário, suas lideranças, a condição material de sua base, as alianças e a política que daí emerge, em especial a reelaboração operada sobre as iniciativas do Estado, sempre tendo como referência o caso particular do ABC.
Impressiona a recorrência de lutas contra problemas que já frequentavam o repertório sindical em 1934, como a exigência de cumprimento da jornada legal de oito horas pelos marceneiros de São Bernardo contra o oferecimento patronal de negociação de horas extras (pág. 53) -o que abre os olhos do investigador contemporâneo não tanto para a precocidade da consciência de classe dos operários do ABC mas para a notável permanência de relações capitalistas, que atravessam os anos sem consolidar plenamente a sua promessa de modernização: no caso, o estrito cumprimento da lei.
A discussão sobre o corporativismo também ganha carne com os relatos cuidadosos e referenciados em fontes secundárias e primárias. Com isso, emerge uma outra faceta do livro, tributária do trabalho do especialista: o estudo de John French é antes de tudo a obra de um historiador. E, aqui, o tratamento do material, o cotejamento das fontes, o rastreamento minucioso das marcas do passado no presente, lançando mão de outros instrumentos (como a entrevista com o ativista e líder operário de Santo André, testemunha e intérprete das lutas desde 1917), o emprego de estatísticas e censos industriais, os processos judiciais, a utilização de registros eleitorais da época, memorandos de diplomatas e funcionários do governo americano, sem falar nos arquivos pessoais de observadores estrangeiros da vida política e sindical nacional, além dos dados compilados pelo governo americano (as estatísticas do trabalho), tudo isso é de admiração para o sociólogo, pelo rigor e pela possibilidade de tomar um fato social segundo vários acessos, brechas, pistas.
A história do movimento operário fornece, assim, um rico material sobre a estrutura das relações de classe em situações concretas. Isso fica claro no caso de um tema caro à sociologia do trabalho: a qualificação. A preponderância anarquista no interior do movimento operário da Primeira República fica ininteligível, sem atentar para sua base de ofício e a dependência dos empregadores em relação à sua força de trabalho, como os pedreiros ou trabalhadores dos "canteiros".
No mesmo sentido, é a não-incidência do regime fabril entre os marceneiros de São Bernardo que fornece a chave para a fundação, em 1935, de uma fábrica cooperativa de móveis pelos próprios operários e para as dificuldades de sua disseminação. Já com a expansão econômica do pós-guerra favorecendo uma política de pleno emprego (pág. 180), a repressão que se seguiu ao surto de militância operária e sindical do início de 46 terminou por poupar os operários qualificados, ainda que assumidamente radicais, uma vez que sua condição profissional os colocava em posição vantajosa no mercado de trabalho.
Estudos como os de French nos advertem quanto ao padrão de permanência das condições de uso do trabalho assalariado fabril como algo defasado em relação às mudanças no formato da industrialização. As evidências vão construindo um certo saber sobre o estilo de processo de trabalho dominante nas fábricas e em outros setores-chave da economia brasileira neste século. A constante queixa contra mestres e supervisores (pág. 55) é indicativa dos métodos de organização taylorista do trabalho, de introdução precose no Brasil. Outro traço de permanência é o uso constante do aparato policial para a repressão de movimentos trabalhistas (págs. 165-6).
O leitor familiarizado com a bibliografia sobre operários e sindicatos no Brasil não pode deixar de saudar o uso completo da literatura disponível em língua portuguesa e estrangeira -basicamente norte-americana-, tornando a leitura um auspicioso exercício de "balanço" da produção na área. Dentro dessa ótica, a análise das alianças de classe para entender as conjunturas, que têm os sindicatos como atores de proa, ganha papel de destaque, principalmente nos capítulos 2 e 4. É nos deslocamentos das relações (e alianças) de classe que vemos as possibilidades e os limites de uma ou outra via que, ao fim, acaba se tornando um "achado". A identidade de interesses entre industriais convencidos da nova vocação da economia brasileira e o Estado desenvolvimentista eludia soluções diversas para a questão social (pág. 74): incorporação pelo Estado ou pela empresa.
O ponto alto do livro é a interpretação da legislação trabalhista do primeiro governo Vargas, isto é, a discussão crítica da tese da "outorga".
French explora bem a apropriação dos mecanismos estatais de regulação da legislação pelos próprios sindicatos "legais", assentando uma leitura que parece cada vez mais tomar corpo entre os estudiosos do tema. Até mesmo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em momentos de fortes movimentos de massa, como no ano de 1947 (pág. 224), passava a se prestar como arma contra o patronato, da mesma forma que o respeito pela Constituição de 1946 era invocado contra a intervenção nas organizações sindicais de Santo André (págs. 218-17). Do ponto de vista dos empregadores, a melhor tática com respeito às leis era aquilo que o autor chama de "resistência passiva" (pág. 56). Outro aspecto relevante pela sua atualidade é o uso individualizante dos tribunais de trabalho do sistema corporativista, originalmente pensados para contemplar demandas de ordem coletiva. A interpretação que dá dos tribunais enfatiza (ainda que restritas) de sua apropriação por parte dos sindicatos, mesmo sob o severo controle do Estado Novo.
O mesmo vale para os outros dois pilares do corporativismo trabalhista: o salário mínimo e o imposto sindical, possibilitando também, contra a corrente estabelecida da literatura, matizar os julgamentos sumários dos dirigentes sindicais da época, sob aqueles constrangimentos, como "pelegos" "sans phrase" (págs. 85 e 134). O gênero da história regional, como nesse caso do ABC, ajuda a pensar melhor alguns argumentos muito generalizantes, como a caracterização fácil do modelo corporativista corrompendo automaticamente todas as lideranças próximas aos sindicatos legais. O autor aponta para a existência de líderes sindicais não-remunerados e para a recusa do repasse do imposto sindical pelas empresas (pág. 126) como impedimentos para o financiamento direto do assistencialismo.
French mostra que não vinha apenas dos industriais a iniciativa de reduzir o poder de barganha dos operários. O Estado, em nome do "esforço de guerra", investia contra as leis editadas por ele próprio (permissão de jornadas de 10 horas, supressão da restrição ao trabalho noturno das mulheres) e, quando a conjuntura do mercado de trabalho favorecia o lado da demanda, suprimia unilateralmente a liberdade de contrato (pág. 125), a fim de impedir os deslocamentos da força de trabalho entre ramos que ofereciam maiores vantagens (do têxtil para o metalúrgico).
São duas as impressões fundamentais ao cabo da leitura: a primeira é quase um ensinamento metodológico, o de que "não se pode inferir a práxis da classe operária unicamente a partir das normas institucionais e jurídicas da legislação trabalhista"; a segunda é que o curto espaço entre o reconhecimento e o enquadramento da questão social no Brasil foi um ponto de inflexão que marcou, para o movimento operário, toda a sua trajetória posterior. Para a "Era Vargas", mais do que mera retórica, vale o dito clássico segundo o qual "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".

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