São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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O silêncio de Orides

ALCIDES VILLAÇA

Este livro frequenta a intensidade da poesia dos quatro anteriores (reunidos em "Trevo", 1988) e nesse sentido não é surpreendente; mas, como é próprio da linguagem poética fazer do reconhecimento uma surpresa ou dotar de impacto um símbolo milenar, a falta de novidade (essa prestigiosa embalagem dos descartáveis) de modo algum nos dispensa de repensar tal qualidade de revelação nesses novos poemas.
Não será com os ouvidos ainda aturdidos que trazemos da rua que perceberemos logo a precisa densidade do silêncio de onde essa linguagem mais uma vez se arrancou, para vencê-lo momentaneamente e a ele retornar, a cada vez para sempre. Esse silêncio estruturante, que tanto pede de nós, apagou quase todos os vestígios da experiência material, para que dela só viessem a vibrar uns poucos estímulos essenciais, convertidos nos símbolos necessários à contraída expressão de um ser no mundo; esse silêncio, roendo a inteireza do verso tradicional e suprimindo as cadências mais fáceis do canto, insinua-se entre as palavras e expressões segmentadas, nos vãos construídos pelo fios da teia-armadilha, onde nós, presas, decantamos as questões da vida e aprendemos a morrer. Lição prevenida da morte, o silêncio de Orides requalifica alguns símbolos essenciais numa economia estóica, quase desumana, de quem se determinou um tão lacônico quanto fundo testemunho. Suas meditadas sínteses poéticas surgem como provocações, nestes dias em que a reflexão ou se aparta da sensibilidade ou sucumbe alegremente ao conforto das reações automatizadas.
As seis partes do livro dão discreta mobilidade e respiração ao conjunto. Seus títulos sugerem a matéria temática ("Fala"), o procedimento construtivo ("Axiomas" e "Figuras"), a natureza dos símbolos ("O Anti-pássaro") e as inflexões dominantes ("Galo (noturnos)" e "Vésper (finais)") de cada elenco de poemas. A unir tudo, um mesmo sentimento estóico do destino, cuja expressão exercitada tem a força de uma justificativa única de vida que esse sujeito guardou para oferecer a si mesmo.
Mas quem é ele? Protegido por silêncios e resistente à confissão, velando a rotina e os impulsos, só nos deixa conhecer a trabalhada síntese de um saber arrancado da experiência e rapidamente projetado numa imagem que serve à idéia ("Casulo"), num tempo sem duração ("Flores"), numa invocação ao vazio ("Prece"), num retorno ao enigma ("Narciso (jogos)"). Sabemos, contudo, que a poesia é a figura que permanece, é o tempo qualificado, é a fala com destino, é o mistério a formalizar-se; nas cifras de Orides, antes de tudo belas, adivinha-se a dor expungida e a perspectiva implícita: fala constituída numa natureza da mulher, com dicção afinada pelo tempo moderno.
Fala de mulher: em "Teia", são recorrentes as imagens da espera altiva, da gestação, da matéria subterrânea, da luz soterrada, do ser encasulado, da vibração oculta -figurações cujo específico "pathos" parece ao mesmo tempo imantado pelo telurismo feminino (mais exigente e mais radical que o realismo masculino) e projetado numa tela mítica rarefeita (menos idealista do que aquela em que se movem os guerreiros épicos, os líricos quixotes, os "gauches", os visionários e os construtores). Refiro-me à absorção da vida como experiência de uma brutalidade atávica, que uma Clarice Lispector (não por acaso presença viva em um dos poemas) tantas vezes constituiu como o minério das escavações minuciosas. A fala de mulher da poesia de Orides parece brotar dos momentos de uma gestação para sempre contida em sua promessa sem fruto, qualificando o lugar lúcido da espera como uma já-realização, como um já-nascimento. As figuras do círculo e do espelho tornam-se básicas para as evoluções de uma arte em que a linguagem se ritualiza como luz e geometria: "Transposição", "Helianto", "Alba" e "Rosácea" são os sugestivos títulos dos seus outros livros. Em "Teia", assim se reinterpreta o mito de Narciso: "A fonte/ deságua na própria/ fonte".
Quanto ao seu lugar estético, a poesia de Orides é também esquiva, por um movimento básico: expressa-se com o senso de economia costumeiramente festejado pelos critérios mais formalistas, mas de modo algum se contenta com a superfície de espelho d'água em que usam boiar os jogos de palavras: seus signos têm lastro e prospecção. Lê-se em "Cartilha": "Foi de poesia/ lição/ primeira:// 'a arara morreu/ na/ aroeira' ": como não surpreender aqui a fusão do jogo didático das cartilhas com a emanação misteriosa das palavras, que sensibilizou para sempre a menina? A arte de Orides vem refinando-se nesses limites desafiadores, com lições de emoção seca e funda (que um dia precisarão arriscar-se em novas modulações). Seus versos buscam uma "nudez/ até o osso/ até a impossível/ verdade", cristalizando um projeto poético em que o drama silenciado e a matriz formalizante indiciam-se mutuamente. Supõem, a princípio, a tradição moderna, mas acabam por constituir uma sua contraface ao mesmo tempo primitiva, intemporal e sofisticada, camada essencial a que chegou essa rigorosa arqueóloga de si mesma. A palavra do sujeito poético pode ser recolhida como também nossa, e nesse acolhimento os símbolos da poesia de Orides ganham o seu sentido histórico. Se não me engano, a qualidade poética desses pássaros e dessas pedras, desses anjos e desses metais, só se deixa apurar num plano mais fundo da consciência sensível; não é banal que alguém o frequente e nele se expresse, em pleno fastígio da vida materializada.

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