São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
Texto Anterior | Índice

A modernidade possível de Portinari

LUIZ A. S. MUNARI

O livro de Fabris é decisivo ao colocar para o leitor diferentes fontes primárias sobre o pintor de Brodósqui. É um texto que oferece leituras múltiplas; sintético, pede leitor versado na obra de Portinari.
O livro, dividido em nove capítulos, na forma de tópicos, pinta aspectos variados de um grande painel, que retrata o pintor e seu tempo. Não é biográfico, mas crítico, advertindo de início: "Portinari é a figura símbolo da modernidade possível num país periférico" (pág. 14). Exige leitura atenta, abordando simultaneamente vários níveis de informação: a sociedade, a política e a paisagem filtradas pelo olhar idealista, clássico e moderno do pintor.
Traça ao longo do texto uma imbricação entre a visão de arte de Portinari e a recepção crítica de sua obra. Conta como o pintor, em 1926, propõe uma arte nacional, sensível ao próprio entorno e que repudia as "tradições inúteis" -um ideário da pintura nacional. Já nessa época, pinta quadros que contêm sementes de anticonvencionalismo, mas ao mesmo tempo, nos retratos, é pintor de tradições: "O retrato quer maneira, o bom gosto lhe impõe posições especiais" (pág. 16), afirma. Para ele, o fundamento da arte moderna estava no classicismo. Assim, a técnica constitui-se como o suporte básico de seu desenvolvimento.
Em 1929, na Europa, Portinari vai observar os pintores clássicos, pouco produz, mas vê, especula e baseia suas convicções ao imaginar a arte seguindo uma tendência que ainda está por surgir. O resultado seria uma profunda decadência ou um novo Renascimento, e isto depende dos pintores.
De volta ao Brasil, retoma os pincéis e vai buscar na terra os motivos que não expressem somente uma vontade intelectual, mas que remetam à memória e ao sentimento, propondo "uma interpretação sincera do nosso meio" (pág. 15). Com isso, pretendia fundar uma Arte Brasileira capaz de participar da educação efetiva da população. Acreditava que a arte, naquele momento, era a criadora de uma consciência nacional e que esta poderia transformar a realidade social. Para ele, o espírito brasileiro deve ser descoberto e pintado, não apenas os motivos, evitando-se a ironia e o ceticismo, valores decadentes. É no Renascimento que encontra os valores táteis para forjar uma nova visualidade informada pelo moderno, mas comportada e não desenfreada. Abomina a abstração e jamais abandona o referente, procurando no antigo e no moderno uma coexistência, que permita falar do Brasil. Este ideário deriva de sua experiência européia e não passa despercebido de Mario de Andrade: "Portinari é capaz de tornar próprios e imprescindíveis elementos derivados de outros" (pág. 42).
No terceiro capítulo, "São Paulo, 1934" -o mais envolvente-, Fabris conta como Portinari desloca sua atenção da arte de cavalete para a arte mural. É um novo caminho, determinado por outra percepção da realidade social. Por ser fundamental, exige novas proporções; os limites do quadro são rompidos. Fabris mostra como este caminho já é enunciado em alguns quadros, onde a figura é tratada de modo escultórico e o fundo com um sentimento de infinitude.
A crítica exalta, às vezes, esta produção, como Pedrosa, que vê "monumentalidade escultórica, corporeidade pura" (pág. 36); enquanto Flexa Ribeiro assinala a "ambiguidade de produção" (pág. 46). O contato com o grupo modernista reforça esta consciência de realidade nacional e o leva em busca de uma iconografia nacional; a expressão é ancorada na realidade social.
Nesta nova iconografia, são retratados os personagens sociais esquecidos ou negligenciados. Anônimo, o mestiço é um paradigma, um motivo que cresce na tela, exigindo maiores espaços. Social e racial formam uma unidade na concepção de Portinari, que vê então no mural, não só um meio expressivo, mas um "elemento precioso de educação e propaganda".
É neste período, assinala Fabris, que o "movimento modernista ganha terreno nas instituições oficiais desejosas de forjar a imagem de um país moderno" (pág. 82). Os murais de Portinari efetivam-se no Ministério da Educação e Saúde. Agora, as distorções de pés e mãos -símbolo do trabalho- levam A. de Lima a falar de "figura gerada sob a ação da Talidomida" e Sônia Maura a propugnar: "Influência perniciosa desse modernismo destruidor" (pág. 92). Nestes murais, nem sempre é equilibrada a relação entre figura e fundo, pois os múltiplos temas naturalistas confrontam-se com a síntese geral abstrata da obra. A influência de Picasso "leva Portinari a perceber a contemporaneidade de todos os estilos" (pág. 110) e a defender que a representação de elementos alheios à plástica -o social, por exemplo- acrescerá à obra algo de útil.
Fabris analisa várias obras, mostrando como estão inseridas nesta dupla visão do clássico e do moderno; a expressão moderna convivendo com a estrutura clássica. Aqui uma dúvida: na têmpera "Catequese dos Índios" (pág. 123), parece que a estrutura piramidal é rivalizada por outra circular, formada pelos vários motivos que cercam o grupo central. Por ser reforçada pela mancha branca de fundo e pela forma circular da parte superior da obra, lembra Piero della Francesca. É neste período, anos 30 e 40, que Portinari engaja-se junto a outros artistas na busca de uma socialização da expressão artística, e sofrem a consequente cobrança de uma política cultural do Estado, que não se importa com a ideologia deles. Mais tarde, o pintor reconhecerá: "A arte que era o melhor meio de propaganda, hoje precisa de uma propaganda danada para ser vista" (pág. 152).
O pintor de Brodósqui não alcança autonomia na linguagem plástica, pois não consegue dar o salto necessário para se libertar da referência ao mundo exterior. A única abstração que consegue é a do processo pictórico que com elementos formais reorganiza suas obras, sem renunciar nunca aos objetos cotidianos, "sociais", deformados ou não. Estilemas de fragmentos da vida moderna povoam seus quadros, pois aí ele compartilha de uma noção peculiar de modernidade característica da sociedade brasileira. Condizente com o momento histórico do país, ele se faz o representante de uma idéia de modernidade. Idéia esta que significa captar a aparência, mas não suas razões fundamentais.
Como quer que seja, Portinari é determinante para se ter uma percepção do moderno no Brasil, pois é o retrato -típico até- de uma noção peculiar de modernidade, que brota nesta sociedade, neste período, neste país periférico e sua modernidade possível. E o livro fecha-se em círculo, remetendo ao início, pedindo releitura.

Texto Anterior: Radiografia de um mito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.