São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Radiografia de um mito

WALTER LOURENÇÃO

A longa biografia beethoveniana publicada em 1928 por Romain Rolland talvez tenha sido o último ensaio, em linguagem romântica, que procurava decifrar os enigmas mentais e emocionais do gênio de Bonn.
No testamento trágico de 1802, por exemplo, Beethoven roga ao seu médico, o prof. Schmidt, que "descreva sua doença logo após sua morte" e que acrescente à "história do seu mal" as dolorosas confissões que ele próprio fazia, "a fim de que, na medida do possível, o mundo se reconciliasse com ele, ao menos depois da morte".
No caderno de conversações nº 28, de abril de 1823, Beethoven dizia: "Não escrevo apenas o que mais gostaria de escrever, mas sim por causa do dinheiro, de que tenho necessidade. Não quer isto de modo algum dizer que eu escreva somente pelo dinheiro, pois logo que esta fase passe eu espero enfim escrever o que para mim e para a arte é a mais alta coisa: o 'Fausto' ".
Torna-se necessário, de tempos em tempos, rever as fontes e refazer as interpretações, num esforço contínuo de redimensionar o valor pessoal de um artista e de sua obra.
Editada em 1991 em Londres, aparece agora em impecável tradução o compêndio sobre a vida e a obra de Beethoven, organizado por Barry Moore, que além de escrever vários capítulos, planejou o conteúdo e a forma do livro. A organicidade do trabalho resultou também dos exames críticos feitos pelos demais autores: Anne-Louise Coldicott, Nicholas Marston e William Drabkin.
É uma obra sintética, mas rica de conteúdo, pois os autores renunciam a comentários grandiloquentes, em favor de dados indiscutíveis e concretos. Os comentários existem, mas destinam-se a tornar acessíveis as informações atualizadas que o texto nos oferece. É uma obra de referência técnica, didática e cultural, com todas as informações indispensáveis para identificar fatos e pessoas, datas e locais, opiniões controvertidas e fatos recentemente descobertos, até agora não divulgados.
A linguagem é precisa e minuciosa e nos oferece informações sobre a vida, a obra e os eventos correlatos. Ou expõe a árvore genealógica de Beethoven e quem eram seus contemporâneos. O panorama político e o musical surgem comparados e interpretados. Há informações curiosas sobre as práticas de execução em público e a receptividade à obra por parte do público e da crítica.
A leitura do livro é facilitada pelo estilo claro e fluente, sem obstáculos à compreensão. As atitudes de Beethoven, como homem e como artista, são situadas com clareza no ambiente social, psicológico e político, na época do domínio dos Habsburgos, no arquiducado da Áustria e no Reino da Hungria. A revitalização do Iluminismo, com a elevação de Maria Teresa ao trono dos Habsburgos, é considerada, particularmente em Bonn e Milão.
O leitor verá aos poucos um panorama em que, a partir de 1761, se multiplicam as atividades culturais da corte, sob a forma de ópera, teatro, música, balé, literatura, poesia e artes plásticas, com a Biblioteca da Corte oferecendo livros e jornais políticos. Assim, fica-se conhecendo os anos de formação de Beethoven num ambiente estimulante, que exerceria poderosa influência sobre "Fidélio", "Egmont" e a"Nona Sinfonia".
Os autores dos vários artigos relacionam de forma adequada os ideais iluministas, mesmo após o falecimento de José 2º, com os ideais da Revolução Francesa, segundo os quais, pelo simples esforço humano seria possível transformar os regimes políticos despóticos. Os sucessores de José 2º, igualmente conscientes dessa possibilidade, recorrem à repressão policial para sufocar os movimentos liberais nascentes.
Procurando explicar a efervescência cultural vienense, os autores relacionam a chegada de dez mil estrangeiros, dignitários de diversos países e suas comitivas, para os quais a cidade prodigaliza entretenimentos, festas pródigas da nobreza, muitos bailes e diversões libertinas, muita comida e bebida, longa temporada de carnaval com fogos de artifício, sob uma disfarçada filosofia de "pão e circo". O próprio Beethoven compõe uma cantata exortando os brios de Viena e teve sua ópera "Fidélio" aplaudida calorosamente por mais de 20 representações consecutivas.
Ficamos sabendo, entretanto, que após o Congresso de Viena, a nobreza estava falida. O palácio do conde Rasumovski incendiou-se durante uma festa e nunca pôde ser reconstruído, O próprio conde abandonou a vida social e até dissolveu o seu famoso quarteto de cordas. Sentimos como coisa nossa contemporânea a ascensão dos agiotas e banqueiros, que assumem os negócios de Estado. As classes comerciais aumentam seu poder e logo se tornam os novos mecenas das artes.
O compêndio examina o cenário do romantismo na época em que Beethoven compõe suas últimas três sonatas e os últimos quartetos, sob a possível influência do pensamento de Schopenhauer. Examina os conceitos de classicismo e romantismo e ainda as antigas teorias de imitação e de expressão e de expressão artística. Beethoven aparece, no sentimento de seus contemporâneos, como o compositor romântico perfeito, cuja música abre para os ouvidos o reino do colossal e do imensurável. Ficamos sabendo como a produção musical se identifica com a própria Vontade e que a luta pelos ideais longínquos se torna mais importante do que os próprios ideais.
Ao lado das altas questões estéticas e éticas, os vários capítulos nos informam sobre as mudanças das condições de vida dos músicos. Podiam-se comprar ingressos "nos aposentos do Sr. Beethoven", "ou com o encarregado dos camarotes".
O leitor ficará a par de interessantes informações sobre contratos cumpridos e não cumpridos, bem como os efeitos da inflação sobre o valor desses contratos. O papel da música instrumental e da orquestra, a profissão de pianista, a surdez de Beethoven, as viagens, a colaboração dos amigos, tudo isso é posto numa rede de informações habilmente integradas pelos autores, para que se tenha uma idéia bastante concreta da vida de Beethoven em dia a dia, com o afastamento histórico que não possuíam seus contemporâneos.
Como eram os concertos da época? Qual a duração? Como eram os programas? Essas perguntas são respondidas pelo livro de uma forma até saborosa, pelo inusitado das situações.
É um livro de consulta, ao qual o leitor retornará com frequência e interesse. É um retrato da vida de Ludwig, o homem, o músico, o regente, o pianista, o professor, com referências à sua aparência, ao seu comportamento e a seus relacionamentos pessoais, incluindo suas relações com várias mulheres pelas quais se apaixonou.
Sucedem-se preciosas informações sobre as crenças de Beethoven em política, religião, literatura e sobre o mundo, referidas em cartas e cadernos de conversação. As ilustrações, além de fotografias de retratos, trazem exemplos de partituras do punho de Beethoven.
Pelas informações que oferece e pela forma como é organizado, este compêndio é uma releitura altamente autorizada do mito beethoveniano, tal como deve ser feita por um estudioso de nossa época.

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