São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Contos de fadas e de índios

RENATO DA S. QUEIROZ

Era uma vez um estudioso russo, Wladimir Propp, que em 1928 nos brindou com uma obra seminal, "Morfologia do Conto Maravilhoso", destinada a influenciar numerosos pesquisadores, sobretudo nas áreas da linguística, antropologia e teoria literária. Examinando um vasto conjunto de contos de fada de seu país, Propp descobriu que tais histórias constituíam narrativas altamente estruturadas, nas quais a variabilidade das personagens em diferentes versões dos contos se contrapunha à uniformidade de suas ações (ou "funções", de acordo com a terminologia de Propp). Em outras palavras: nos contos de fadas as mesmas ações são atribuídas a diferentes personagens. Propp concluiu então que as funções configuram elementos estáveis nesses relatos e não dependem de quem as executa e do modo como são realizadas pelos diversos atores, assinalando ainda que o número de funções é limitado -31 no total-, aparecendo elas numa sequência assombrosamente previsível, muito embora nem todas ocorram necessariamente num dado conto.
Antropólogos, linguistas, historiadores e estudiosos da literatura estão há muito tempo familiarizados com este modelo estrutural de análise da narrativa. Houve até mesmo quem procurasse avaliar algumas teorias científicas sobre a evolução humana à luz do método criado por Propp, mostrando que a trajetória evolutiva do "Homo sapiens" costuma ser descrita, nas narrativas paleantropológicas, de maneira semelhante às etapas percorridas pelos heróis dos contos de fada: desenvolvimento a partir de origens humildes (vida arboricola), provações advindas de um ambiente hostil (ameaça de predadores no solo, clima impiedoso etc.), aparecimento de um "doador" (inteligência) e triunfo final do herói (conquista da civilização), tudo isto graças aos "presentes mágicos" (ferramentas, linguagem articulada, razão, sentido moral) ofertados pelo "doador". Os episódios evolutivos mais importantes nesta longa e penosa transição para a humanidade (terrestrialidade, bipedismo, encefalização e civilização) obedeceriam a determinadas sequências de funções, todas elas presentes em diversas teorias sobre a evolução humana.
Fortemente influenciado pela obra de Propp, Alan Dundes, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, consome boa parte dos nove ensaios de seu livro "Morfologia e Estrutura no Conto Folclórico" para demonstrar que a análise estrutural apontada acima pode ser adotada com indiscutível sucesso no estudo do material folclórico. Os contos indígenas norte-americanos, considerados por muitos folcloristas como um conjunto de narrativas desprovidas de estrutura, coesão e estabilidade, constituem o grosso do material investigado por Dundes. O rigoroso estudo morfológico desses contos (notadamente dos mais difundidos: "Mergulhador de Terras", "Prestidigitador de Olhos" e "Orfeu") conduz o autor à tese fundamental do livro: os contos indígenas norte-americanos são, na verdade, altamente estruturados, não lhes faltando uniformidade, coerência, complexidade e estabilidade de forma ou conteúdo. Assim, os que apregoam a inferioridade dos contos indígenas relativamente aos contos de fada europeus seriam vítimas de um ardil etnocêntrico.
O autor vê o estruturalismo como um método rigoroso de etnografia descritiva, por meio do qual o pesquisador consegue discernir os padrões formais básicos dos diferentes gêneros folclóricos. Entretanto, "na análise final, delineamentos puramente estruturais podem revelar-se estéreis. Mais descrevem que interpretam". Certo de que boa parte do conteúdo do folclore -sobretudo aquelas suas dimensões aparentemente irracionais e ilógicas- só poderia ser compreendida em termos do inconsciente, pois os informantes não costumam ter consciência do sentido mais profundo dos relatos, Dundes recorre às ferramentas interpretativas da psicanálise freudiana, "modificada pelo relativismo cultural e pela teoria feminista".
Duras críticas são dirigidas por Dundes aos que não encontram uma ordem racional no universo dos contos indígenas norte-americanos: observa ele, em primeiro lugar, a dedicação parcial desses estudiosos à investigação científica, uma vez que o folclore, com raras exceções, não desfruta de nichos acadêmicos acolhedores na América; aponta, ademais, o caráter ainda essencialmente compilativo-descritivo da pesquisa folclórica, donde as escassas tentativas de classificação sistemática do material recolhido e, o que é pior, os tímidos esforços interpretativos nesta área do conhecimento. O estudo do folclore, ressalta Dundes, carece de avanços teórico-metodológicos, não obstante os progressos realizados em disciplinas afins, tais como a antropologia, a linguística e a psicologia, cujos resultados em geral não se transferem para o campo do folclore.
No prefácio à edição brasileira da "Morfologia e Estrutura no Conto Folclórico", Alan Dundes revela-se bom conhecedor e apreciador dos nossos folcloristas, evocando, a propósito, as contribuições de Renato Almeida, Edison Carneiro, Câmara Cascudo e Paulo Carvalho-Neto. Tal admiração, entretanto, não o impede de manifestar algumas ressalvas: "Não estou certo de que a nova geração de estudiosos do folclore no Brasil esteja informada das principais inovações teóricas ocorridas na folclorística contemporânea".
Sem desmerecer o ensaio inicial e mais longo do livro, dedicado por inteiro à crítica dos estudos folclóricos tradicionais e ao desenvolvimento da análise morfo-estrutural dos contos em geral e dos contos indígenas norte-americanos em particular, são os seus ensaios concisos justamente os mais cativantes, aparecendo aí temas muito pouco esmiuçados pelos folcloristas. Nesta parte, as contribuições mais inovadoras tratam das manifestações folclóricas não verbais (jogos infantis, mímicas e danças, morfologicamente semelhantes aos contos tradicionais), superstições, adivinhações, merecendo destaque a compreensão do ritualismo inerente aos trotes que têm lugar no dia 1º de abri.
Visto que a abordagem estrutural se presta pouco ao trabalho interpretativo e à apreensão das diacronias, Alan Dundes passa a empregar, com desenvoltura, a teoria freudiana, contextualizando-a, como convém a um autor erudito e não desprovido de boa formação antropológica (o que o faz descartar as propostas junguianas, incompatíveis com o relativismo cultural). A interpretação psicanalítica, assinala Dundes, opõe-se à leitura literal dos fatos folclóricos.
É assim que as derradeiras páginas do livro ficam reservadas ao estudo psicanalítico do conteúdo simbólico dos mitos e contos tradicionais. Conclusões originais e, por vezes, até mesmo ousadas, aparecem então nas análises do "Mito do Dilúvio" -visto por Dundes como um mito masculino da Criação- e das identidades simbólicas vinculadas ao sexo e à sexualidade no conto europeu "O Pastor de Coelhos".
Isto tudo confere dinamismo e graça ao livro em pauta. Entretanto, o leitor relativamente bem familiarizado com a escola folclórica italiana, e admirador dos escritos de Gramsci, encerra a leitura de "Morfologia e Estrutura no Conto Folclórico" com a sensação de que o material examinado por Dundes tem ainda mais o que dizer.

Renato da Silva Queiroz é professor de antropologia na USP e autor, entre outros, de "Um Mito Bem Brasileiro: Estudo Antropológico Sobre o Saci" (Editora Polis).

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