São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Psicanálise pela arte

JOÃO A. FRAYZE-PEREIRA

Aos que se interessam pela teoria da arte e pela psicanálise, esse número da revista "Percurso" ficará como referência, já que são raros os textos de psicanalistas que se voltam para a arte, desde Freud, de um modo não-reducionista.
Em geral, como método, a psicanálise se aplica à obra de arte, convertida em mera ilustração da teoria (às vezes da prática) psicanalítica. Diante de uma pintura, os psicanalistas se comportam como se fossem cegos (G. Lascault), como que modelados pela tragédia, precisam perfurar os olhos para terem acesso ao invisível. Ora, é esta cegueira que torna imprudentes certas análises que discorrem de maneira semelhante sobre desenhos infantis e expressões modernas. Mediadas pelo registro genético, reduzem a obra à função de mascarar significados que o saber psicanalítico crê desvelar.
Entretanto, examinando a concepção freudiana da arte, descobre-se uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da psicanálise -a tragédia e a pintura (Lyotard). Por um lado, a tragédia oferece à psicanálise uma chave para o trabalho de interpretação, uma vez que antecipa pelo menos uma representação privilegiada do que é posto em jogo numa psicanálise: "a relação do desejo com a castração" (Green). É diferente com a pintura: a obra, como uma cena onírica, representa um objeto ou uma situação ausentes que, censurados, só se dão a ver por intermédio de seus signos plásticos. Como o sonho, o objeto plástico é pensado segundo a função de representação alucinatória e de ludíbrio. Mas, por essa via, o efeito estético identifica-se ao efeito narcótico. Isto é, se a forma estética é uma espécie de véu destinado a subornar as defesas do destinatário, paradoxamente, "o efeito estético é anestésico" (Thévoz). Ora, será possível sair desse círculo fechado em que as obras acabam desaparecendo? Será possível interrogar a arte, sem renunciar à psicanálise? Essas questões estão implicadas nesta "Percurso".
Distribuídos entre um texto clássico (Gombrich) e um discurso vivo (Melsohn), que diferenciam os campos estético e psicanalítico, os escritos se desenrolam como uma tapeçaria. Com várias linhas teóricas, diferentes gostos poéticos e nós temáticos, os autores costuram um percurso que vai do sensível à interpretação e desta à ficção, sempre pressupondo a paciente experiência da espera pelo advento do sentido.
Tempos diferentes compõem esse tecido; tempo do pensamento, do devaneio associativo, da elaboração metapsicológica; tempo formante da arte. Nessa trama de metáforas e conceitos, salienta-se, porém, uma questão: a "angústia flutuante", feita imagem, drama, música, literatura, fotografia e cinema contemporâneos. Problematizando o conceito de "sublimação", tal questão instaura outra -a morte na arte, "trágico entrosamento de conceito e vida". Mas, se são muitos os traçados, no avesso, o leitor encontrará um nó que alinha a diversidade dos pontos de vista: o específico da visão psicanalítica.
Não é exagero pensar que um dos principais propósitos da arte contemporânea é produzir no suporte uma espécie de análogo do inconsciente, uma textura pulsional que suscita no espectador inquietude, revolta, desassossego. A situação das obras, hoje, parece não mais satisfazer as condições propostas por uma estética freudiana, pois descaradamente o sinistro e o vazio assaltam as formas, a obra antes "desrealiza a realidade" do que "realiza as desrealidades imaginárias" (Lyotard). Se a arte de hoje tornou-se diferente é porque a angústia a perfura, subvertendo sua função. Mas, no próprio tempo de Freud, ele já mudara, principalmente com as vanguardas. O espaço construído no Quatrocento decai, bem como a função de representação, núcleo da concepção freudiana da arte.
Assim, compreender a arte moderna, pelo menos após Cézanne, com a noção de representação e sua correlata -a sublimação-, é ignorar a modernidade das artes. No entanto, à "angústia flutuante" corresponde um princípio valioso que governa a escuta psicanalítica: o princípio da "atenção flutuante", um tipo de observação errática, "atenta a tudo o que se supõe perturbar a expectativa do leitor" (Green). A atenção flutuante opõe-se à contemplação.
Com efeito, tanto na relação com o paciente como no exame de uma obra, há que se ter um primeiro tempo da experiência, no qual o olhar se encontra com algo sensível, sem reconhecer aí estruturas fixas. Seguindo o princípio da atenção flutuante, o que estaria em jogo seria a apreensão de um sentido que, emergiria entre a obra e o receptor, na forma de articulações insuspeitadas que vão se tornando gradualmente evidentes. Assim, mesmo admitindo com Freud que o símbolo dissimula ou disfarça o desejo, é preciso reconhecer que também é ele que o revela e o designa. Nesse caso, não há razão para se dissipar um símbolo com vistas a avançar numa região situada além ou aquém da obra.
Como a leitura crítica não é nem a que visa a totalidade, nem a que visa a intimidade, mas a que sabe exigir alternadamente a distância e a proximidade, "não é preciso recusar nem a vertigem da distância, nem a cegueira da proximidade: é preciso desejar esse duplo excesso no qual o olhar está a cada vez perto de perder todo o poder". Quer dizer, esquecendo-se de si para deixar-se surpreender, como espectador, o analista perceberá na obra surgirem interrogações que se dirigem a ele. E, antes de falar por sua própria conta, conclui Starobinski, será preciso emprestar sua própria voz a essa estranha potência que o interpela.
Ora, justamente o que marca este "Percurso" é a disposição da maioria dos autores para manter os olhos abertos e sustentar com palavras esse ser outro, fecundando a psicanálise e respeitando, sem idealização, a desnorteante força da arte.

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