São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 1996
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A orgia das medidas provisórias

SANDRA STARLING

É recorrente na história brasileira o célebre comentário de Hollanda Cavalcanti sobre a mudança de ideário entre os políticos do 2º Império: "Não há nada mais parecido com um saquarema (conservador) do que um luzia (liberal) no poder".
Essa verdade pode ser mais uma vez sentida com a edição de um decreto presidencial, no último dia 24 de junho, que, por ironia, leva o número do ano em que se instalou o Estado Novo: 1937.
Esse decreto, a título de estabelecer regras para a redação dos atos normativos do Executivo, sujeitos à aprovação do presidente da República, "autolimita" o poder do governo de editar medidas provisórias, manobra típica dos "déspotas esclarecidos" que já tive oportunidade de discutir em artigo nesta Folha, em 12 de março passado.
Enquanto o Congresso Nacional tergiversa na tarefa de regulamentar o uso de medidas provisórias, o governo trata de firmar sua posição a respeito, por meio do decreto em referência: é o dono do juízo de valor sobre o que é relevante e urgente em matéria legislativa; e nada deve impedir o direito de reeditar, quantas vezes entender necessário, qualquer medida provisória.
Mas, voltando aos "saquaremas" e "luzias", é sempre bom lembrar que o então senador Fernando Henrique Cardoso é o autor da resolução nº 1 do Congresso Nacional que atribui a uma comissão parlamentar mista a prerrogativa de, liminarmente, rejeitar uma MP, se entender que a mesma não é relevante ou urgente; e que o seu ministro da Justiça, Nelson Jobim, é o autor de projeto de lei (pronto para ser votado pelo Senado desde 1991) que limita a uma única vez a faculdade do Executivo de reeditar medidas provisórias.
O pior, porém, é que nossos plenipotenciários acham que podem vender gato por lebre. No tal decreto em que reafirmam ser o Executivo o juiz exclusivo da conveniência da adoção de uma MP, dizem que essa atribuição somente será utilizada em caso de "estado de necessidade legislativa", caracterizado pela "exigência ou indispensabilidade de tomada de providência de índole legislativa com efeito imediato, sob pena de se verificarem prejuízos de ordem administrativa, econômica, social ou de segurança pública".
Para que o leitor tenha idéia do autoritarismo do governo, cumpre esclarecer que o dito "estado de necessidade legislativa" é um arremedo daquilo que no artigo 81 da constituição alemã é chamado de "estado de emergência legislativa" ("Gesetzgebungsnotstand").
As MPs previstas em nossa Constituição são um contrabando lamentável trazido do parlamentarismo italiano para viciar nosso presidencialismo.
No sistema alemão, elas são limitadas e funcionam assim: o primeiro-ministro envia à Câmara dos Deputados um projeto de lei que considera relevante e urgente; aquela casa legislativa rejeita-o ou o aprova com modificações inaceitáveis para o governo; o primeiro-ministro, então, solicita do presidente da República, com prévio consentimento do Senado, autorização para decretar o estado de emergência legislativa.
Feito isso, o projeto antes repudiado deve ser reapreciado pela Câmara dos Deputados; novamente rechaçado, poderá tornar-se lei se o Senado, revendo decisão da Câmara, o aprovar ou se a Câmara não o examinar dentro de quatro semanas.
E mais: durante o mandato de quatro anos de um primeiro-ministro, o estado de emergência legislativa somente pode ser decretado uma única vez, abrindo um prazo máximo de seis meses para que outros projetos já rejeitados possam ser reexaminados da maneira aqui descrita.
Em síntese: na Alemanha, o governo só impõe como lei a sua vontade com a aquiescência de um órgão legislativo, o Senado, com a concordância do presidente da República, politicamente neutro, e por um prazo determinado.
Aqui, a suspeitíssima autolimitação transforma o provisório em permanente. Finge estabelecer um limite quando, no parágrafo 2º do artigo 22, afirma: "Não serão disciplinadas por medidas provisórias matérias que possam ser aprovadas dentro dos prazos estabelecidos pelo procedimento legislativo de urgência previsto na Constituição", mas, logo em seguida, no parágrafo 3º, essa tênue limitação é eliminada, já que: "Caso se verifique retardo ou demora na apreciação de projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo, poderá o órgão competente, configurada a urgência, propor a edição de medida provisória também na hipótese do parágrafo anterior".
Isso mostra que o governo pretende continuar mergulhado na orgia das medidas provisórias, porque ainda não aprendeu a lição deixada por Tancredo Neves: "Quando a esperteza é demasiada, acaba engolindo o esperto".

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