São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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O arquipélago de Guillermo

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

"Gênese - Cuba foi descoberta por Cristóvão Colombo e seus companheiros de viagem (...) no dia 28 de outubro de 1492. (...) Num mapa da América feito quando ela ainda não se chamava América, em 1501, Cuba aparece duas vezes. Primeiro como ilha, depois como continente. Êxodo - Saí de Cuba no dia 3 de outubro de 1965: sou cuidadoso com minhas datas. Por isso as guardo."
Cabrera Infante, "Mea Cuba"

O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante nasceu em 22 de abril de 1929. Cuba foi descoberta em 28 de outubro de 1492.
E não é por acaso que esse mestre do romance e dos trocadilhos esperou a data de seu aniversário, em 1992, quando Cuba completava 500 anos, para escrever a introdução de "Mea Cuba", coletânea de ensaios que a Companhia das Letras agora lança no Brasil.
O livro é a autobiografia política do intelectual e também uma crítica aguda -e bem-humorada- do pós-Revolução Cubana.
Autor de "Assim Na Paz Como Na Guerra" (1960), "Três Tristes Tigres" (1967) e "Havana Para um Infante Defunto" (1979), Cabrera Infante converteu-se, desde 1965, no grande desafeto de Fidel Castro.
Mas nem sempre foi assim. O escritor -que recebeu a Folha em Londres para falar de "Mea Cuba" e das relações entre a literatura e a política- apoiou a Revolução Cubana, em 1958, e foi figura importante da cultura de seu país até ir para o exílio.
*
Folha - "Mea Cuba" está saindo no Brasil. Como é ler o livro agora?
Guillermo Cabrera Infante - A situação em Cuba se deteriorou muito nos últimos três anos e a condição econômica é intolerável. Há um florescer maldito da prostituição. Por isso, pelo que ocorre lá, o livro ganhou atualidade.
Recomendo o ensaio sobre o suicídio de políticos em Cuba. E o capítulo que faz o paralelo das vidas de Virgilo Piñera e Lezama Lima, personagens da cultura cubana.
Folha - A tradução para o inglês é ligeiramente diferente do original, em espanhol. O sr. prefere qual?
Cabrera - Há a adequação de jogos de palavras do espanhol para o inglês. Mas isso é uma questão de estilo e não de conteúdo, que é o mesmo nas duas versões.
Folha - E como o sr. vê a relação dos escritores com a política? Gore Vidal, por exemplo?
Cabrera - Gore Vidal sempre teve aspirações políticas. Mas contra ele pesou ser homossexual -e ser tão conhecido como homossexual. Nos EUA o tema ainda é tabu.
Folha - E Vargas Llosa, que se candidatou à Presidência do Peru?
Cabrera - Vargas Llosa se equivocou. Não somente em suas aspirações, mas também com relação ao eleitorado peruano. Pensava que bastava ser uma pessoa decente, um homem honrado, não haver nunca excercido cargo público... Foi um período de horror em sua vida, mas ele já superou isso e está novamente integrado à literatura.
Folha - O sr. não acha que Vargas Llosa também se desgasta publicando um livro por ano?
Cabrera - A mim parece excessivo. Todos esses escritores sul-americanos publicam um livro por ano, o que é impossível de fazer, ainda que sejam coletâneas.
Folha - E acontece porque os escritores têm vontade de ganhar dinheiro, por exigência dos editores?
Cabrera - Acredito que, com Vargas Llosa, é porque ele não pode deixar de escrever. E isso é uma espécie de saída emocional que ele encontra. Há outros casos, de escritores que fazem isso por dinheiro. Não deve ser o de Vargas Llosa, que ganhou prêmios como o Hemingway, o Prêmio Cervantes, o Planeta -e isso significa dinheiro.
Folha - Para Salman Rushdie, a política apareceu mais como acidente do que como vocação -ou decisão do escritor de se dedicar à política. Como o sr. vê o episódio gerado pela publicação de "Os Versos Satânicos"?
Cabrera - Não conheço o livro, mas, quando me chamaram para assinar uma carta de escritores, um desagravo, me neguei. Não acredito que o problema seja político, nem literário, mas sim teológico. E de teologia não sei nada. Acho que a única coisa que Rushdie pode fazer é submeter-se à humilhação. Na Idade Média, isso era um crime tão terrível como a "fatwa" (condenação à morte) que caiu sobre Salman Rushdie. Ele deveria recolher os livros, ir até Meca e fazer ato de contrição.
Nunca vi outra solução. Ainda que a "fatwa" seja suspensa, pode ser que venha um árabe louco que, para ganhar o céu, lhe dê um tiro na nuca. Não gostaria de estar nos seus sapatos... Muitos exemplares do seu livro foram vendidos no calor do episódio, mas o fato passou e a "fatwa" não.
Folha - O sr. também não vive uma espécie de "fatwa" em Cuba?
Cabrera - Meus livros estão proibidos, mas algumas pessoas os lêem. O tradutor norte-americano Anthony Kerrigan, primeiro tradutor de Jorge Luis Borges para o inglês, me visitou em Londres seis anos atrás e contou que meus livros eram vendidos no mercado negro. Disse que "Havana para um Infante Defunto" custava, àquela altura, dez latas de leite condensado! E disse mais: "Não se entusiasme, com 15 latas é possível comprar 'Perestroika e Glasnost', de Gorbatchov". É incrível o que se passa em Cuba. Fizeram até o dicionário de literatura cubana com Lydia Cabrera (1900-1991) e nenhum outro Cabrera.
Folha - Mas a Lydia Cabrera não era também anticastrista?
Cabrera - Era, e sofreu perseguições terríveis. Vivia com outra senhora muito rica. Elas tinham uma quinta, com portas de ferro, largo caminho entre palmeiras e uma casa colonial. Quando elas foram a Miami, nos anos 60, a quinta foi arrasada e deu lugar a um playground cheio de areia.
Folha - E qual a importância da obra literária dela?
Cabrera - Lydia criou em realidade uma espécie de "etnopoesia", uma obra entre o estudo e a criação literária. Deixou obra muito extensa, e seus "Contos Negros de Cuba", escritos em Paris, em 1936, refletem bem isso.
Folha - Falando de política e de ambição, se Fidel Castro deixasse o poder, o sr. voltaria para Cuba?
Cabrera - Veja o meu sorriso. Sempre respondo essa pergunta assim: não voltaria no primeiro avião. Agora já não fazem falta escritores em Cuba. Lá são necessários engenheiros, arquitetos, economistas, homens de negócio.
Folha - Mas o sr. teria vocação e vontade para ocupar algum cargo?
Cabrera - Não, por favor. Nunca, nunca! Minha posição com relação a Fidel Castro é moral. Me parece obsceno que um homem fique no poder 38 anos sem eleições e nenhuma consulta popular, contra a vontade da maioria.
Folha - O sr. mencionou Jorge Luis Borges, que foi tido por reacionário. A política pode contaminar o trabalho literário?
Cabrera - Borges é um dos maiores escritores de fala espanhola. Ele tinha uma idéia de velho argentino, de patriota, de patrício. Alguns de seus ancestrais eram militares e morreram em guerras. Na realidade, suas simpatias políticas lhe custaram o Prêmio Nobel. Enquanto isso, outros escritores que são íntimos de Fidel Castro não sofrem do mesmo desprezo...
Borges era uma pessoa curiosa, tinha uma modéstia demasiada, uma falsa modéstia. Mas tinha muita graça. A última vez que jantamos aqui em Londres, em 1984, perguntei o porquê da vontade de receber o Nobel, já que ele era o único escritor de língua espanhola que será lido daqui a cem anos. Disse ainda que o dinheiro não lhe interessava, ao que ele me respondeu: "Não acredite nisso!".
Mas é preciso perdoar os pequenos pecados de Borges. Ele se portou muito bem durante a ditadura de Perón. Sua mãe foi presa e ele foi condenado a deixar seu cargo na Biblioteca Nacional para inspecionar aves num mercado na periferia de Buenos Aires. E ele se portou muito bem. Como também o fez na cegueira. Mesmo sem ver, ia ao cinema.
Folha - O cinema tem também tomado muito de seu tempo, não?
Cabrera - Muito. Viajo para palestras e lançamentos, mas encontro tempo para ver filmes. Acabei o roteiro de "The Lost City", que Andy Garcia deve dirigir, e vou adaptar um conto para a BBC.
Folha - E como é aparecer na Enciclopédia Britânica? Ser verbete dá conforto ao escritor?
Cabrera - Sim, de certa forma. Eu não esperava, mas agora já posso morrer tranquilo.

O jornalista Silvio Cioffi viajou a Londres a convite do British Tourist Authority (BTA), Grupo Orient-Express e British Airways.

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