São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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A memória de Cuba

JUAN GOYTISOLO
ESPECIAL PARA "EL PAÍS"

"Mea Cuba" reúne textos escritos por Guillermo Cabrera Infante desde 1968. Nem todos possuem o mesmo vigor literário; mas são sempre lidos com vivo interesse.
O belo retrato de José Martí -antípoda ao da hagiografia oficial-; a lúcida análise da epidemia de suicídios antes e depois do processo revolucionário (do doutor Chibás aos do presidente Dorticós e de Haydée Santamaría).
A evocação de autores tão diferentes como Novás Calvo, Carlos Montenegro e Lydia Cabrera ou de velhos amigos (revolucionários desde a época de Batista e vítimas depois do sistema que ajudaram a criar) como Alberto Mora ou Gustavo Arcos é traçada com singular precisão, em textos em que a dor, a tristeza e a amargura se intercalam com pontadas de ironia feroz.
O "Retrato do Artista-Comissário" Louis David -sucessivamente servidor de Luís 16, Robespierre e Napoleão- alcança validez universal e intemporal. Todos, ao longo de nossa vida, conhecemos espécies humanas como o grandiloquente retratista do imperador dos franceses, capazes de cometer as piores vilezas com o propósito de sobreviver aos embates dos maremotos históricos. Quanto à passagem consagrada ao Homem da Máscara de Ferro -o primeiro preso político desconhecido- deveria ser erigida como símbolo da Anistia Internacional: poucos autores expuseram de forma mais convincente os horrores e tropelias dos detentores do poder onímodo.
Mas são as "vidas paralelas" e os retratos de criadores amigos que conferem ao livro sua autêntica dimensão. A emulação e às vezes rivalidade entre Lezama Lima e Virgilio Piñera, pintada com agudeza, ternura e humor, nos brinda uma imagem indelével destes dois grandes mestres, cuja condição homossexual, transformada em destino, provocou a situação de isolamento, desprezo e perseguição que os acompanhou até o túmulo: páginas saborosas, frequentemente cômicas e carregadas de contida emoção sobre aqueles que viveram como eles entregues à literatura e mantiveram até o fim sua heróica integridade.
A recordação de Calvert Casey, que se suicidou em Roma depois de abandonar a ilha, é inesquecível. Nós que conhecemos, ainda que ligeiramente, o autor de "El Regreso y Otros Cuentos" percebemos sua finura, inteligência e também grande vulnerabilidade, traços todos eles magistralmente descritos em páginas simultaneamente profundas e leves, num crescendo comovedor.
"Uma década depois de morto" -escreve Cabrera Infante-, "Calvert ressuscita, se levanta em sua tumba e debaixo da lápide livresca estende a mão ossuda que segura umas poucas páginas para nos deixar saber o que é a verdadeira literatura, visível neste texto que é sua carta de triunfo; sua prosa é um verso comunicante: no reverso está a vida, no anverso a morte. Calvert Casey vive e morre em cada leitura e seu texto é uma cinta de Moebius, de leitura finita, infinita. Esta imagem, seguramente, é outro nome para a imortalidade. Mas, quem tornou Calvert Casey mortal?".

Tradução de Ricardo de Azevedo

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