São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Aborto, homossexuais e catolicismo

Deputado confunde princípios religiosos com direitos humanos

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em seu texto "Esterilização, aborto e homossexuais" (Folha, 30/7/96), o deputado Hélio Bicudo se declara socialista e se mostra católico. O problema central do deputado não está, contudo, na tentativa de conciliar seus princípios políticos com os religiosos, mas sim no pressuposto de que não há diferença entre eles, algo com que poucos socialistas e poucos católicos concordariam.
Tendo-se em vista o teor dos assuntos abordados, quem fala mais alto no artigo não é o Hélio Bicudo socialista, mas o católico. E este parece, inclusive, insinuar que, não podendo de fato serem socialistas os que discordam de seus dogmas religiosos, eles estariam (inconscientemente?) fazendo o jogo do inimigo, ou seja, dos EUA. Mas, como não há correlação automática -positiva ou negativa- entre os interesses americanos e os alheios, lidar com esse tipo de argumentação equivale a jogar com a carta obsoleta do antiamericanismo num contexto no qual, curiosamente, várias das causas combatidas pelo deputado -o direito ao aborto e o casamento homossexual- são defendidas nos EUA.
Não é, porém, em termos de política internacional que essas questões estão sendo hoje em dia examinadas: o terreno privilegiado para sua discussão é o dos direitos individuais. Pois há, basicamente, três níveis nos quais ela poderia ser conduzida. O primeiro -o macropolítico centrado em interesses demográficos- é irrelevante, caso se aceite que o Estado existe para servir o cidadão, não o contrário. O segundo é o dos interesses individuais e, caso se atenda a esses, tampouco há o que se discutir: aborto, casamento homossexual etc. devem ser legalizados.
Resta o terceiro e mais complexo nível: o dos princípios abstratos. O que ocorre atualmente é o confronto inconcluso entre dois tipos de princípios: os religiosos e os ligados aos direitos humanos. Numa república secular e laica, os primeiros não deveriam interferir na esfera pública. No caso do aborto, porém, postulando que o embrião é, desde o momento de sua concepção, um ser humano e dispõe, assim, do direito inalienável à vida, a Igreja Católica tocou, sem dúvida, no âmago do problema.
Sua posição, no entanto, não é tão coerente quanto parece. Nunca esteve muito claro quando é que, para ela, um feto passava a dispor de uma alma, pré-requisito de sua plena humanidade. A idéia de que ele a tem desde o momento da concepção é um dogma recente (aliás, muito conveniente), imposto pelo papa atual, João Paulo 2º, que chegou a comparar os fetos abortados às vítimas do genocídio nazista -embora esta comparação seja, no fundo, somente parcial, porque o Vaticano tem feito infinitamente mais contra as clínicas de aborto do que fez (ou melhor, não fez) outrora contra as câmaras de gás.
Bicudo busca também apoio na ciência. As respostas desta, porém, são apenas hipóteses nuançadas que não implicam juízos de valor. Quando é que um amontoado de células passa a ter direitos? É uma questão arbitrária que só pode ser decidida mediante acordos sociais necessariamente provisórios.
O direito inalienável à vida, onde quer que ela comece, não tem, no entanto, nada a ver com o casamento de homossexuais. Assim, no texto do deputado, a questão do aborto se liga a esta outra da seguinte maneira: para um católico, "a finalidade última da espécie humana" é a glorificação de Deus por meio da "missão transcendental de transmitir a vida".
A doutrina católica é mais complexa, pois ela se opõe à busca do prazer pelo prazer (particularmente no caso de sua obsessão mais doentia: o prazer sexual), chamando a isso de "hedonismo". Mas o caminho preferencial, recomendado pela igreja, não é o da procriação e sim o da castidade. A procriação é o preço que, pelos prazeres pecaminosos da luxúria, devem pagar aqueles incapazes de se manterem castos. Filhos são, a rigor, menos uma bênção que um castigo. É por isso que o catolicismo abomina qualquer tipo de contracepção e de sexo não-reprodutivo, pois estes seriam um jogo sujo, uma tentativa de se escapar à justa punição. Assim, enquanto a vida é apenas um direito, a procriação é um dever para os que não conseguem evitar o sexo.
Mas, numa visão laica, ele é mais frequentemente uma forma de prazer. Se pode ser reprodutivo, isso depende de uma decisão que apenas seus praticantes individuais estão autorizados a tomar. E o matrimônio não é uma instituição transcendente, destinada à produção de bebês, mas um arranjo patrimonial, uma sociedade limitada de ajuda mútua estabelecida entre parceiros sexuais mais ou menos permanentes.
Ao Estado cabe salvaguardar os direitos contratuais de cada parceiro, mas não interferir nos critérios -sociais, raciais, emocionais, estéticos ou, no caso, sexuais- segundo os quais um seleciona o outro. Mesmo aqui, a posição católica é contraditória, pois a coerência exigiria que seus fiéis condenassem tão veementemente os casamentos heterossexuais que voluntariamente abram mão da procriação quanto o fazem com as uniões homossexuais. A condenação mais enérgica destas últimas tem um nome: homofobia. Não é um paradoxo reivindicar direitos para embriões e, ao mesmo tempo, negá-los para os homossexuais?
O que o deputado Bicudo faz é emprestar aos ditames de sua fé a legitimidade de um conjunto diferente de princípios. E são estes que saem perdendo. Religião e direitos humanos provavelmente não se misturam. Estes são um acordo social livremente estabelecido entre seres humanos. Aquela é uma questão de dogmas e de fé e se aplica somente aos seus fiéis. Os direitos humanos são precisamente isso: humanos. Não são sagrados, porque o conceito de sagrado varia de religião para religião e, ao contrário do que se pensa, não existe entre elas um consenso ético. Muitas não reconhecem nem sequer o direito de todos os homens à vida. Garantir-lhes esse direito é uma meta política tão desejável quanto difícil de se realizar. Já sua finalidade é uma questão religiosa que não diz respeito ao Congresso ou a qualquer instância representativa.
O fato de que o aborto será provavelmente legalizado no Brasil, como foi o divórcio, não fará com que ele deixe de ser um pomo de discórdia, como segue sendo nos EUA. Quem quiser honestamente aboli-lo, não mediante a criminalização, mas tornando-o desnecessário, dispõe somente de dois caminhos: (1) generalizar o acesso aos métodos contraceptivos que permitam o sexo impedindo a gravidez indesejada ou (2) a instauração imediata da sociedade perfeita que Hélio Bicudo denomina "socialista", embora seu nome adequado seja "utopia católica". Enquanto ela não chega, convém que a política se norteie não pela Bíblia, pela Tora ou pelo Corão, mas sim pela vontade popular. Isso pode não ser ainda o socialismo e seguramente não é catolicismo. É apenas democracia.

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