São Paulo, terça-feira, 20 de agosto de 1996
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A mídia e a "censura"

JOSÉ ROBERTO MILITÃO

Em 1909, um mulato carioca escreveu e publicou "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", criticando os donos da imprensa e sua mercenária atuação social em prol do status quo. Foi boicotado pela autocensura imposta pelos jornais. Não conseguiu o debate produtivo que esperava, produziu outras obras, enlouqueceu e morreu jovem. Foi o maior pré-modernista. É bom lembrá-lo e a Isaías, a respeito da "censura" do Tiririca.
Hoje, na mídia, notáveis jornalistas e juristas condenam a iniciativa do movimento negro contra a infeliz música que ofende milhões de negras. Tentam ridicularizar a indignação dos afro-brasileiros, impondo uma reação para a manutenção de antigos valores culturais. Reconhecem a ofensa. Porém alegam, equivocados ou de má-fé, dois frágeis argumentos e esquecem que ninguém nasce racista ou preconceituoso. São formados pela cultura ruim que defendem.
O primeiro argumento, dos precedentes, lembra antigas músicas de épocas em que os negros não podiam repudiá-las, como hoje o fazem. O fato da ofensa anterior não autoriza a atual. O segundo é surpreendente, partindo de notáveis, pois querem fazer crer à opinião pública ser a interdição judicial o mesmo que a nefasta "censura governamental". Confundem os três Poderes, autônomos. Os juízes não são governo, estão disponíveis inclusive contra os atos ilegais dos governantes e são fundamentais para a garantia dos direitos das minorias.
Ao Poder Judiciário, acionado a posteriori, com o duplo grau de jurisdição, nos limites do que dispõem as leis, assegurando a ampla defesa, num regular processo judicial, mediante as provas produzidas, cabe reconhecer ou não se a atividade imputada é nociva aos direitos coletivos. Sendo nociva, o art. 11 da lei 7.347/85 prescreve: "... que o Juiz determinará ... a cessação da atividade nociva...". Para o caso em tela, equivale à interdição judicial da obra. Isso não é censura, é democracia.
A "censura" proibida pela Carta de 88 é outra coisa. Os notáveis e os negros, desde o escritor Lima Barreto em 1909, a conhecem bem. É o governo ou o patrão inibindo o autor, por pressão ou coação. Ato administrativo, de ofício, por delegado do poderoso, sem nenhuma limitação legal. É exercida por critérios pessoais. Não tem duplo grau de jurisdição e não assegura direito a defesa. Os negros não a desejam com toda a evidência.
No Brasil, a censura e a autocensura jamais impediram as ofensas raciais. O Poder Judiciário, democraticamente, poderá fazê-lo bem. Será o início de um novo e saudável comportamento cultural. É a obsessão proibida a Lima Barreto, agora garantida pelo Judiciário. Oxalá...

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