São Paulo, quinta-feira, 29 de agosto de 1996
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Zico é uma ave estranha no país dos "espertos"

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem se interessa por futebol, e sobretudo pelos bastidores do espetáculo, tirará muito proveito do livro "Zico Conta Sua História", recém-lançado pela editora FTD.
A magreza do volume -pouco mais de cem páginas- engana. Discretamente, como quem não quer nada, Zico vai falando sobre tudo o que interessa: dos primeiros tempos, em que comeu o pão que o diabo amassou para transformar seu físico franzino num corpo capaz de enfrentar a truculência dos beques, até sua atuação na Secretaria de Esportes, em que teve de usar sua habilidade para driblar pedidos de emprego e pressões politiqueiras.
Como pano de fundo dessa carreira excepcional aparece todo um cenário de mazelas: a falta de caráter e de profissionalismo dos cartolas, a estrutura precária dos clubes e federações, a parcialidade da imprensa, a deslealdade de certos jogadores menos técnicos.
O mais interessante é que Zico não se furta à necessidade de dar nome e sobrenome aos bois dessa história.
Está lá, por exemplo, o ex-presidente do Flamengo Dunshee de Abranches, que forçou a transferência do jogador para a Udinese e depois declarou publicamente que fez isso porque ele já estava "bichado". Está lá, também, o perna-de-pau Márcio Nunes, do Bangu, que quebrou criminosamente o joelho do craque em 85, dando início a um calvário de cirurgias, aparelhos e fisioterapias que durou anos.
Zico teve de enfrentar tudo isso para se tornar um dos maiores craques do mundo, numa época em que brilhavam astros como Platini, Rummennigge, Falcão e Maradona.
Mas a luta mais importante foi silenciosa e solitária: a luta interior, contra a acomodação, contra a vaidade, contra a pressa.
Um garoto de 17 anos que acorda às cinco e meia da manhã num subúrbio carioca, se esfalfa em viagens de trem e ônibus correndo do treino à escola, da escola à musculação, e chega em casa de volta às dez e meia da noite -esse garoto está indo não apenas contra suas pulsões juvenis, mas também contra toda uma tradição de amadorismo e improvisação que marca a nossa cultura.
Num país em que a regra é "levar vantagem em tudo" e ser "esperto" para escapar da disciplina do aprendizado e do treinamento, Zico é uma reluzente exceção.
Pode ser que os "bad boys" que hoje se tornam estrelas em meia dúzia de partidas e passam a ganhar milhões o considerem um "caxias", quando não um otário.
Mas será que os otários não são eles, ao matar a galinha dos ovos de ouro? Será que não ganhariam mais, como jogadores e como indivíduos, se respeitassem o ofício que lhes dá sustento e dignidade?
*
Já que falamos em exceções honrosas à picaretagem geral, um ex-craque que deveria colocar em livro sua brilhante trajetória é Tostão, exemplo de seriedade como jogador, como médico e, agora, como comentarista esportivo.
Seria, com certeza, um livro transbordante de humanidade e repleto de revelações importantes para a história do futebol brasileiro.

O editor-executivo Matinas Suzuki Jr., que escreve nesta coluna às terças quintas e sábados, encontra-se de férias

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