São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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"Ressuscitados" se reacostumam à vida

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Eles estão saindo provisoriamente de uma espécie de corredor que conduziu milhares à morte. Estão tendo mais uma chance e agora precisam decidir o que vão fazer com o resto de suas vidas.
Novos tratamentos estão ampliando a sobrevida de pessoas com Aids, que pode vir a ser encarada como uma doença crônica, com a qual muitos doentes poderão conviver ao longo de vários anos, talvez décadas.
Pacientes recuperados pelos novos remédios vivem um período em que tentam se adaptar à novidade. Para muitos, a caminhada agora pode ser longa e feita em condições bem mais favoráveis.
Antigos planos saem da gaveta, carreiras são retomadas ou redefinidas, impõe-se a necessidade de conseguir recursos para custear demorados -e caros- tratamentos.
"Não é muito fácil voltar. Faz pouco tempo", diz Luiz Sérgio Forster, 31, ex-empresário de calçados. No ano passado, com imunidade já muito baixa, fechou o negócio em Ubatuba (SP), veio para a casa da mãe em São Paulo.
As máquinas da fábrica ele ofereceu ao Grupo de Incentivo à Vida (GIV), entidade de apoio a portadores do vírus da Aids, da qual hoje é diretor.
Em março passado, após um ano de diarréias crônicas, com desidratação aguda, fraco e sem fôlego até para caminhar, Forster começou a tomar uma combinação de drogas antivirais, inclusive um inibidor de protease, a estrela maior de um tipo de terapia que chamou atenções na última Conferência Mundial de Aids em Vancouver, Canadá, em julho.
Logo, a diarréia cedeu, Forster pôde andar novamente, recuperou peso. "Eu já estava acostumado com a idéia de morrer. Não existiam esperanças. Em determinado momento, a morte é até bem-vinda, quando você não tem mais nada a perder, não tem mais amigos, planos, amores", diz ele.
"De repente, se mostrou novamente o mundo. Voltar à vida normal, ter que ganhar dinheiro, trabalhar, é complicado. Dá medo também."
Fica a questão de que tipo de vida essas pessoas vão levar. Em cinco meses com o coquetel de drogas, a pedagoga Silvia Klingspiegel, 30, chefe do setor de concursos da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa da UFMG, deixou o hospital, onde estava à beira da morte, ganhou peso (ela chegou a pesar 31 kg) e voltou a trabalhar.
No domingo passado, comandava um concurso para 15 mil candidatos a carteiro em Belo Horizonte. Voltou até a bicar seu chopinho com os colegas à beira da lagoa da Pampulha.
Melhorou muito, embora às vezes se sinta como um laboratório ambulante. Além da combinação de invirase, 3TC e AZT, toma outros oito medicamentos diários e depende de exames feitos até nos Estados Unidos e de viagens a São Paulo.
Endividada, ela se pergunta até quando poderá bancar um tratamento tão caro e até quando esses remédios farão efeito.
Se a vida continua, resta saber o que fazer dela. "Um traço comum ao grupo que está reagindo bem ao coquetel são os planos para o futuro", diz a psicóloga Cibele Lacerda, que acompanha mensalmente de 250 a 300 pacientes no Centro de Referência de Aids mantido pela Prefeitura de Santos (SP).
Arriscar uma carreira como artista plástico, por exemplo, está nas considerações de Marco Aurélio de Araújo, decorador.
A comerciária Cristina Andrade sonha em voltar a desfilar de biquíni pelas praias da cidade dirigindo uma moto. A que tinha, uma Honda Saara 350, ela vendeu, "por causa da friagem".
Os ressuscitados do coquetel ainda estão muito excitados para cogitar sobre algo que até há pouco era impossível -o que vão fazer na virada do milênio. A pedagoga Silvia só tem certeza de que estará feliz, não importa o que esteja fazendo: "Desde que não seja concurso...".

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