São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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O MITO PROFANO

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Antonin Artaud (Marselha, 1896/Ivry-sur-Seine, 1948) é o mais maldito entre todos os autores malditos deste século. Certo? Enquanto ator, diretor e teórico, ele enterrou de vez as antigas e desgastadas formas dramáticas e propôs um teatro inteiramente novo que, mais do que arte, é uma verdadeira revolução social, política, existencial. Certo? Ele se revoltou contra o conformismo e a mediocridade da vida burguesa, foi por isso chamado de louco e encerrado num manicômio. Certo? Sua assim chamada loucura era infinitamente mais lúcida do que a habitualmente chamada normalidade. Certo? Ele não encarava o mundo do ponto de vista esclerosado da cultura, mas do ponto de vista radical da própria vida. Certo? A intelectualidade assustou-se com seu radicalismo e lhe voltou as costas. Certo? Ele enveredou pela experiência dos limites, valendo-se, para tanto, das drogas pesadas. Certo? Não. Errado, errado, errado.
Maldito e desprezado? Artaud esteve associado desde a juventude à fina flor da intelectualidade; publicou seus poemas nas melhores revistas; participou do movimento surrealista como figura central, editando sozinho um dos números de "La Révolution Surrealiste"; trabalhou com os principais diretores teatrais e cinematográficos (em filmes clássicos de Abel Gance, Carl Dreyer, Fritz Lang, Pabst); teve, por algum tempo, seu próprio teatro, o Théâtre Alfed Jarry; e recebeu atenções, homenagens e bajulações dos escritores e dos críticos mais importantes da época.
Suas aventuras intelectuais foram geralmente custeadas por amigos ou admiradores influentes e sua famosa viagem ao México (que rendeu o livro "Os Tarahumaras", sobre uma tribo com a qual conviveu brevemente, consumindo no entretempo muita mescalina) foi financiada pelo governo daquele país.
Revolucionário e antiintelectual? Talvez. Mas há poucas coisas mais tradicionais do que a revolução dramática proposta em "O Teatro e Seu Duplo" (Martins Fontes), uma coletânea de panfletos, ataques, diatribes e manifestos que, resumidamente, contrapõe à dramaturgia realista/naturalista de fundo psicologizante de meados do século 19 um espetáculo total que lance mão de recursos ritualísticos e místicos normalmente encontrados nas religiões.
Qualquer semelhança com o Nietzsche de "A Origem da Tragédia" ou mesmo com Richard Wagner não é mera coincidência, pois esse tipo de revolta sempre foi uma das constantes centrais, mais que do modernismo, de todas as teorias românticas, como Susan Sontag demonstra bem em seu excelente ensaio sobre Artaud.
Seu apego às tradições não-européias -ao contrário do de seu conterrâneo e contemporâneo René Daumal, que estudara a fundo as artes indianas- decorria de um contato fugaz com o teatro balinês e ficava entre o "orientalismo" (no mau sentido) e o mito do bom selvagem. Quanto ao seu antiintelectualismo, trata-se naturalmente de um velho clichê demagógico próprio dos intelectuais, que, para assumir, contra a cultura, o "ponto de vista da vida ou da experiência", fazem o que podem fazer os intelectuais: lêem vorazmente e escrevem sem parar. A obra completa do francês, composta de poemas, roteiros, peças, ensaios, artigos, ficção, cartas e mais cartas, beira 30 grossos volumes.
No que diz respeito à loucura e às drogas, porém, ele era efetivamente louco, viciado e, apesar de toda a literatura criada ao redor desses fatos -começando em boa parte com a sua própria: "Van Gogh o Suicidado da Sociedade"-, isso lhe causou transtornos bastante reais, muito sofrimento e, provavelmente, a morte. Como diz o poeta norte-americano Clayton Eshleman: "Aos cinco anos de idade, ele pegou meningite grave e quase morreu. Entre 1917 e 1920, crises mentais tornaram necessário seu confinamento em vários hospitais e numa clínica suíça. Como resultado dos vários sedativos que lhe foram administrados na adolescência, ele tornou-se depois, em sua juventude, um viciado em láudano, morfina e heroína. Dadas as distorções de sua imagem (especialmente nos EUA), é importante observar que a 'loucura' de Artaud não era nem pose nem sequer decorrência de experiências arbitrárias com as drogas. Artaud esteve doente durante toda a vida". Em outras palavras, tudo indica que sua obra foi escrita a despeito e de certa forma contra a doença, não devido a ela.
Só que o mito que transforma a loucura em agente criativo não se desfaz facilmente, sobretudo quando filósofos, críticos, psicanalistas etc., em geral franceses, insistem em mitificar Artaud de acordo com as conveniências de teses e programas estéticos ou políticos. Roger Shattuck, todavia, num artigo de 1976 -talvez o melhor e mais equilibrado que já se escreveu sobre o francês-, afirma que, após passar por manicômios hediondos, ele foi finalmente internado em Rodez, sob os cuidados de um especialista competente que, sem dispensar os eletrochoques, incentivou-o a escrever porque via nisto a melhor terapia.
E, embora ele tivesse sido sempre extremamente talentoso, produtivo e não raro brilhante (como na sua poesia da década de 20), foi nessa época e imediatamente depois que atingiu o melhor de suas forças, redigindo os poemas violentos, obcecados com a fecalidade e contaminados pela glossolalia dos dois ou três últimos anos de sua vida conturbada.

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