São Paulo, terça-feira, 3 de setembro de 1996
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'Vacas sagradas' orientam jornalismo cultural

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que o oficialato da cultura nacional faria barulho em torno de "Tieta do Agreste", o filme, era de se prever. Afinal, o grande feito do filme é reunir "vacas sagradas" em quase todas as áreas, do cinema à moda, da literatura à música.
Que essa turma de notáveis -Cacá Diegues, Caetano Veloso, Sonia Braga, Ocimar Versolato- proteja os amigos para defender um filme pífio, precário, era igualmente de se esperar. Afinal, essa gente se enredou numa teia de auto-indulgência e condescendência mútua há anos e repele qualquer tipo de reparo com unhas e dentes.
Agora, que o jornal entre nessa espiral acrítica com um servilismo que faz vergonha, só não é inacreditável porque está lá, impresso, na edição de quinta-feira, 29 de agosto, na capa e contracapa da Ilustrada.
E aqui não estamos falando do único texto opinativo sobre Tieta publicado nessa edição. Ali, sob a vinheta "A Crítica", Arnaldo Jabor está em território livre. O leitor, pelo menos, está avisado sobre o que vem a seguir.
O problema está nos textos que se pretendem informativos. Já no título, o jornal transfere para o roteirista e para o autor da trilha sonora a responsabilidade de informar sobre o filme: "Caetano e Ubaldo falam de Tieta, Glauber e cinema".
Ao jornal cabe simplesmente registrar e imprimir. Mais adiante, o jornalista continua: "E não é ruim esse 'Tieta'. Pelo menos é o que dizem em entrevista João Ubaldo Ribeiro, roteirista, e Caetano Veloso, autor da trilha".
Um pouco mais abaixo: "Folha - É bom? (o filme)" "Caetano - É muito bom." "Ubaldo - Também gostei muito (...)"
Pronto. Está estabelecida a verdade sobre o filme, ditada por duas pessoas com interesses óbvios em afirmar as qualidades do filme, o que é natural, uma vez que estão sendo convidadas a falar sobre seu trabalho (e as vendagens de seu disco e os ingressos de seu show, em um dos casos) e avalizada pelo autor da entrevista.
O que se segue é apenas um blá-blá-blá inócuo, onde Caetano e Ubaldo trocam gentilezas, fazem seu merchandising pessoal, chamam Glauber Rocha como ajudante desse festival de rapapés e amabilidades (e o sujeito está morto e nem pode se recusar a prestar esse papel)...
Se havia alguma intenção de ironia ou ao menos de relativização naquele "pelo menos" do início do texto ou ainda na única tentativa de intervenção crítica ("será que o merchandising não é exagerado?"), acaba por ficar soterrada. E estamos conversados.
A afirmação imposta ("o filme é bom") lá no início do texto não sofre abalos, nem alterações. Tudo é reiteração. O jornalista grava a fita e a transcreve, a entrevista se faz não do debate entre entrevistador e entrevistado, mas é comandada por este último, que está lá defendendo seu peixe.
Show E é uma prática corriqueira, como vamos observar em outro texto. Falando sobre a estréia do show de Caetano Veloso e Gal Costa, a repórter começa assim: "Um dos melhores shows do ano estréia hoje em São Paulo."
A afirmativa, na linha do "não vi, mas já gostei", é, de novo, inspirada pelo principal interessado no sucesso do espetáculo: "'É minha melhor trilha, a mais exuberante', disse Caetano".
Claro, a repórter teria todo o direito a essa opinião, se houvesse assistido ao show, mas, em nenhum momento do texto, o leitor é informado disso, nem sequer se a repórter teve acesso a algum ensaio.
Ok, o disco já está lançado e, com um certo esforço de imaginação, poderia se atribuir a frase a esse conhecimento prévio da repórter, mas há uma boa distância entre o disco gravado em estúdio e o espetáculo. É um dos melhores shows do ano simplesmente porque Caetano Veloso assim o disse.
Guardadas as devidas proporções, esses procedimentos são equivalentes a acreditar na inocência do assassino apanhado em flagrante, empunhando a faca que ainda respinga sangue ao lado do cadáver, só porque ele foi perguntado a esse respeito. E, pior, assumir como verdade e publicar no jornal.
Assim como o merchandising é exagerado e inábil no filme, a divulgação (porque nesse conjunto de textos não há nem informação, nem reflexão) que a Folha faz de "Tieta do Agreste" é francamente servil, acrítica, desinformativa, autoritária em relação ao seu leitor.
Tudo o que o leitor sabe ao final da leitura é que a direção é de Cacá Diegues, o roteiro é de João Ubaldo Ribeiro, baseado no romance de Jorge Amado etc. etc. (que, de resto, não constituem informações novas), que o show está com os ingressos esgotados (a única informação com alguma utilidade) e, sobretudo, que o leitor deve achar o filme bom.
A cobertura de "Tieta" grita pelos excessos, mas é apenas um exemplo. O caso é que a postura subordinada às estrelas da mídia e, em particular, a uma certa casta de "intocáveis" (que tem Caetano Veloso como padrinho), se tornou a linha editorial auxiliar deste e dos demais cadernos culturais.
Amém.

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