São Paulo, sábado, 7 de setembro de 1996
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Independência: o Real e o sonho

RUBENS RICUPERO

Durante a visita de Tancredo Neves a Buenos Aires, pouco antes da posse que deveria ter sido e nunca foi, Alfonsín ofereceu-nos um almoço em Olivos. Ao propor o brinde, improvisou em torno da imagem do Hino Nacional, que descreve o Brasil como um "sonho intenso". Os brasileiros da comitiva nos entreolhamos: o Hino era tão familiar que jamais havíamos reparado na metáfora.
Nos Estados Unidos, o "sonho americano" é tema de todas as horas. Seu sentido aproximativo é o de que todo cidadão, não importa a raça ou a classe, pode aspirar à riqueza e à glória. Pode, em tese, partir, como Lincoln, de uma cabana de madeira e chegar a presidente. É a fórmula do "self-made man", da mobilidade social, misto de liberdade e igualdade de oportunidades.
É claro que isso tem algo de misto, não na acepção de "engodo", mas de reconstrução imaginária das origens e aspiração e inspiração em relação ao futuro.
Se assim é, qual seria o nosso mito fundador, o nosso mito criador? Qual é o conteúdo do sonho brasileiro?
Em nosso caso, não temos o direito de falar nem em relativo igualitarismo no país da escravidão por excelência, nem numa liberdade frequentemente violada. Arrisco-me, porém, a dizer que o nosso sonho é o da fraternidade, conceito que captura melhor tanto a emotividade de nossas relações pessoais como a idealização e romantização que fazemos das origens multirraciais da nação.
Dessa perspectiva, a tão vilipendiada "democracia racial" não será adequada para descrever um passado e um presente de injustiça, mas pode bem sinalizar, como meta, o país que gostaríamos de ser quando crescermos.
Ora, o que é a independência senão a capacidade de transformar o sonho em realidade, de superar os limites externos e internos à sua concretização?
Em sua última conferência em Paris, José Guilherme Merquior recontou nossa história como a sequência de sonhos ou projetos que as sucessivas gerações de brasileiros sonharam para o país, começando com José Bonifácio e seu projeto de monarquia constitucional e liberal, em tensão contínua com o país real da escravidão e da autocracia.
Hoje, 174 anos depois, são já mais de sete as gerações de milhões de brasileiros que sonharam o Brasil, na maioria das vezes sob a forma do mínimo denominador comum, ainda irrealizado, de uma pátria capaz de dar-lhes um prato de comida e um teto sob o qual dormir.
O último dos nossos projetos foi o do desenvolvimento modernizador, que teve nos anos JK sua idade de ouro para depois esgotar-se na crise dos 80. Desde então, andamos órfãos de um projeto que evite privilegiar apenas um dos componentes do modelo, como fizemos com o desenvolvimento da economia, sob Juscelino, ou com a necessária reconstrução da democracia política, na superação do período militar.
Esse projeto-síntese só pode edificar-se em torno da justiça social e da redução da desigualdade, mas sem sacrifício da democracia e tendo como fundamento uma economia dinâmica que proporcione empregos e bem-estar.
A precondição é consolidar a estabilidade recém-conquistada, pois um país sem moeda não tem verdadeiramente soberania, não é independente.
A estabilidade, contudo, é apenas o ponto de partida, não o de chegada, no caminho da construção gradual e permanente do país de nossos sonhos.
É obra que nunca chega ao fim, pois nossos filhos terão novos sonhos, a partir mesmo da parcial realização dos nossos. Estes, em particular o da justiça, têm sido retardados não por uma suposta falta de independência externa, mas pela nossa incapacidade de nos emanciparmos dos esquemas internos de dominação e privilégio.
Não foram os países estrangeiros ou a economia internacional que atrasaram o fim do tráfico de escravos, a abolição ou a reforma agrária, mas as resistências de setores domésticos favorecidos pelas estruturas injustas.
É por isso que, feita a independência externa, falta agora liberarmo-nos dos entraves internos que nos impedem de chegar um pouco mais perto da justiça.
A justificação existencial, a razão de ser e existir como brasileiro neste fim de século, é contribuir para afirmar, a cada dia, a cada ano, mais justiça, mais igualdade, mais independência. Um sonho, sim, intenso, talvez, mas sobretudo um sonho consistente e redentor.

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