São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Relações perigosas

MARIZA CORRÊA

este é um comentário rabugento sobre um livro importante. Quando li pela primeira vez "As Três Culturas", a perspectiva do autor parecia inovadora: tratava-se de analisar a luta da sociologia para definir-se em relação às ciências naturais, de um lado, e à literatura, de outro, como "uma espécie de terceira cultura". A perspectiva continua sendo inovadora: o campo das lutas ideológicas e políticas travadas contra a jovem sociologia, que se queria tornar uma ciência em meados do século passado, é sempre um tema fascinante e o autor certamente conhece bem seus personagens. Mas, numa segunda leitura, algo não andava: envelhecem os livros, ou envelhecemos nós? Provavelmente ambos.
O desconforto na releitura começa na segunda parte do livro, que trata da Inglaterra. Na primeira, a inovadora perspectiva parece se sustentar -há uma narrativa bem ancorada sobre a disputa dos beletristas franceses com o Durkheim/"invasor da Sorbonne" (além de tudo judeu, além de tudo influenciado pelos alemães...) e, aqui e ali, algumas ironias a respeito dos positivistas brasileiros. Nem sempre se concorda com as simpatias do autor mas, afinal, sua antipatia por Gabriel Tarde faz parte do quadro em cores fortes que ele está tentando pintar: numa batalha há sempre vencedores e vencidos. Também se esperaria de uma narrativa que promete acompanhar essa "espécie de história secreta" das ciências sociais -"o confronto entre a fria razão e a cultura dos sentimentos"- e que anuncia que nela "a mulher desempenhou um papel muito importante", uma atenção maior às autoras nessa história.
Chamadas a representar a parte dos "sentimentos" na trajetória de alguns autores -e consideradas responsáveis pelas suas guinadas teóricas-, as autoras escolhidas, no entanto, resistem e se mostram ao leitor antes como fiéis seguidoras da "fria razão".
Clotilde de Vaux, Harriet Taylor e Beatrice Potter parecem entrar na história como um recurso literário do autor, para exemplificar as crises espirituais de Auguste Comte, John Stuart Mill e Sidney Webb. Mas, curiosamente, as três mantiveram-se sóbrias: duas delas eram casadas -Clotilde, que morreu sem ter consumado seu romance platônico com Auguste e Harriet que, depois de enviuvar, aceitou a mão de Stuart Mill; apenas Beatrice foi a companheira de vida inteira de Sidney Webb.
A influência de Clotilde é assim apresentada: "Nesse ponto de ruptura da biografia de Comte, surgiu aquela cisão do positivismo que, a partir do século 19, influenciaria permanentemente não apenas a história das ciências sociais, mas que também teria impacto político de longo alcance, tanto na França como na Inglaterra. Um romance teve papel importante na passagem do positivismo de uma teoria científica para uma religião"(pág. 35). O romance era real, ainda que passasse a ser alimentado pelas leituras literárias de Comte, e essa influência romanesca seria a responsável pela inflexão que ele deu ao positivismo a partir de então. Ao tratar de Durkheim, que parece representar a fria razão nesse cenário, o autor não faz qualquer especulação sobre sua vida amorosa, ou suas preferências literárias: em seu caso, o contraponto "literário" será oferecido por Gabriel Tarde e seus filhos.
Passando a um dos exemplos ingleses, o autor anota um paralelo entre as trajetórias de Comte e Stuart Mill: "De modo um tanto surpreendente, foi na mesma época que Comte e Mill atravessaram graves crises espirituais; ambos encontraram a causa da crise na excessiva intelectualização de suas vidas e atividades científicas. Reagiram a isso com uma reabilitação da cultura dos sentimentos e uma mudança drástica em suas concepções de valor: o aumento crescente da importância da literatura em relação à ciência. Tanto em Comte como em Mill, esse processo de emocionalização da vida e de literatização da obra foi acelerado e intensificado pela relação com uma mulher" (pág. 111).
E é só no exemplo invocado de Sidney Webb e Beatrice Potter que a maneira de apresentar a relação entre razão e sentimento se inverte: "Beatrice Potter e Sidney Webb utilizavam em suas cartas duas linguagens diferentes: Beatrice, a da 'ratio' e da ciência; Sidney, a do sentimento e da poesia"(pág. 123). Apesar desse comentário sobre a correspondência dos enamorados, mais adiante o autor afirma: "Justamente porque se mantinha firme no ideal da ciência 'pura', Beatrice Webb sentia sua atividade de pesquisa como uma missão, no sentido religioso, e como uma ação que envolvia não somente o intelecto mas também seus sentimentos, por menos que permitisse que isso fosse percebido publicamente"(pág. 136).
Essa inversão entre quem representa a razão e quem representa o sentimento produzirá um efeito estranho no andamento da segunda parte do livro: citando os exemplos de Clotilde e de Harriet, o autor estava interessado era nos "desvios sentimentais" dos correspondentes delas, em apontar o efeito deletério da emoção sobre a razão. Sidney e Beatrice, apesar de serem ingleses de boa cepa, tornaram-se comunistas depois de uma viagem à então União Soviética em 1932: logo, seus "excessos" deveriam ter sido causados pela influência da literatura -influência que o autor se dedicará a pesquisar. Sobre Sidney, concluindo a apresentação de suas cartas melosas de juventude, o autor já dissera: "Daí por diante desapareceram aos poucos as alusões literárias das cartas" dele e citava Leonard Woolf, que descrevera "seu implacável bom senso". Restava avaliar o impacto da literatura em Beatrice. "Na verdade, a segurança dos Webb, pelo menos no tocante a Beatrice, era muito mais o resultado de disciplina do que a expressão de sua constituição (sic). Essa disciplina dependia de um rigoroso controle dos sentimentos -constantemente ameaçado pelo desejo, somente reprimido com muito esforço, de afastar-se da ciência e dedicar-se à literatura." (pág.
134)
Nessas três vinhetas, o autor explicita melhor do que em seu longo texto sobre a França e a Inglaterra seu ponto de partida: "Se (a sociologia) renunciar, porém, à sua orientação científica, ela retorna a uma perigosa proximidade com a literatura"(pág. 17). E, mais adiante: ".. frequentemente uma tentativa de literatização da intelectualidade sociológica ou a competição recíproca entre a poesia e a ciência social são o primeiro sinal do desvio na direção de uma ideologia totalitária". Entende-se, assim, por que o "desvio literário" de Comte recebe tanta ênfase, o de Mill nem tanta, já que temperado pela cultura inglesa do bom senso, e por que Beatrice Potter Webb é castigada pelo seu secreto desejo de se tornar uma escritora -não obstante seu trabalho público e reconhecido como cientista social.
Perry Anderson observou muitos anos atrás que a ausência de uma tradição sociológica na Inglaterra só poderia ser compreendida se comparada à brilhante antropologia social lá produzida: "Em lugar de pensar a si mesma como totalidade, a sociedade britânica exportou o conceito de totalidade para os povos colonizados". E, sendo conhecida tanto a influência de Durkheim como da literatura num de seus pais fundadores -a frase de Malinowski é repetida em todos os manuais de história da antropologia: "Rivers foi o Rider-Haggard da antropologia, eu serei seu Conrad"-,
a comparação certamente teria alguma rentabilidade para a proposta de Lepenies.
Restaria avaliar a terceira parte, mas deixo a tradição alemã para quem conheça melhor seus personagens. Cabe anotar, no entanto, que se traça um paralelo da crise intelectual de Max Weber com as sofridas por Comte e Mill, o autor o absolve do pecado da emotividade -talvez porque ela não tenha sido co-determinada por nenhum envolvimento romântico.
Se a tese central do livro se tornou ligeiramente anacrônica, particularmente em tempos de uma reavaliação do impacto da literatura nas ciências sociais, especialmente na antropologia, e de uma reavaliação, particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, a respeito da atuação das mulheres na construção das ciências sociais.
Mas creio que esta tradução é importante por duas razões: ao recontar a história da sociologia de um outro ângulo, Lepenies põe também em cena personagens muito raramente associados (as) a essa história e nos obriga a repensar configurações já congeladas nas histórias tradicionais e nas nossas cabeças. Especialmente na terceira parte do livro, ao estabelecer contrapontos e relações pouco usuais entre Weber, um importante poeta alemão (Stefan George), e Thomas Mann -e ao responder que sim, a sociologia continuou a existir sob o regime nazista-, Lepenies traz para nossas estantes nacionais, pobres em referências sobre essa vertente daquela história, uma contribuição extremamente valiosa. E talvez leve alguns antropólogos a refletir sobre certos fundamentos históricos da aparentemente tão (pós)moderna relação entre antropologia e literatura.

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