São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pedagogia libertadora

PAULO GHIRALDELLI JR.

o novo livro sobre Paulo Freire possui quatro biografias sobre o educador, depoimentos e artigos de intelectuais e políticos sobre sua vida e escritos, além de uma indicação bibliográfica sobre o método de alfabetização que levou seu nome e sobre a "pedagogia libertadora".
As biografias foram montadas de maneira significativa. Seus autores são Ana Maria Araújo Freire, Moacir Gadotti, Carlos Alberto Torres e Heinz-Peter Gerhardt. Os depoimentos e artigos aglutinam pessoas das mais variadas posturas e dos mais distintos lugares. O livro parece não ter a pretensão de trazer novidades, mas de contribuir para a informação de leitores e pesquisadores jovens. Isso não quer dizer que ele não "dê o que pensar" aos mais calejados.
Pode-se observar neste livro uma viagem, de ida e volta, do pensamento pedagógico norte-americano pelo mundo, ou melhor, pelo Terceiro Mundo. Sua parte inicial lembra a filiação de Paulo Freire a Anísio Teixeira e, assim, de certo modo, ao pragmatismo de John Dewey (págs. 92, 118, 152 etc.), enquanto as páginas finais mostram como autores norte-americanos se aproveitam hoje dessa pedagogia brasileira, tomada como paradigma de pedagogia terceiro-mundista. "Paulo Freire - Uma Biobibliografia" deve muito ao encontro, no final dos anos 20, de Monteiro Lobato com Anísio Teixeira.
Lobato ficou encantado com Anísio e o enviou para Fernando de Azevedo, com uma carta de apresentação que dizia o seguinte: "Fernando. Ao receberes esta, pára! Bota prá fora qualquer senador que te esteja aporrinhando. Solta o pessoal da sala e atende o apresentado, pois ele é o nosso grande Anísio Teixeira, a inteligência mais brilhante e o maior coração que já encontrei nestes últimos anos de minha vida" (1).
Fernando de Azevedo conheceu Anísio em 1929. Em 1932, redigiu o "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", no qual casou a sociologia positivista de Durkheim com a filosofia pragmatista de Dewey. A influência durkheimiana, no "Manifesto", vinha pelas mãos do próprio Azevedo. A influência deweyana, pela maneira como este conseguiu conciliar sua perspectiva com a de Anísio, ex-aluno de Dewey. O "Manifesto" representou o início do nosso engajamento na luta pela escola laica, gratuita, obrigatória e acolhedora da co-educação dos sexos, um eco dos ideais da Terceira República francesa, pela qual Durkheim se empenhou como intelectual e professor. De um ponto de vista mais propriamente pedagógico, o "Manifesto" buscou acolher alguns princípios caros à Pedagogia Nova, como a atenção aos métodos de ensino que articulariam trabalho cooperativo com respeito aos interesses individuais. Tratava-se de colocar no Brasil, no âmbito do ensino, algo do modo de vida preconizado pelo liberalismo radical, então defendido por Dewey e hoje reatualizado por Richard Rorty.
A partir da relação entre Anísio e Azevedo, a sociologia positivista francesa e a filosofia pragmatista norte-americana, que se estranhavam no exterior, aqui se amalgamaram de uma maneira rica, criativa e interessante. Foi com esse espírito criativo, demonstrado na elaboração do "Manifesto", e também, em parte, com a própria tradição gerada a partir do conteúdo do texto de 1932, que fizemos nascer a "pedagogia de Paulo Freire", no início dos anos 60, esses anos "que não terminaram", como bem lembrou Sônia Marrach (pág. 563). É essa criatividade que parece ser do agrado de vários professores norte-americanos mais comprometidos com a democracia, como atestam os textos de Henry Giroux, MacLaren e outros.
MacLaren, cujas obras estão sendo traduzidas no Brasil, comparece com o artigo "Paulo Freire e o Primeiro Mundo". Rortyanamente, diz: "O trabalho de Freire ajudou-me a reconhecer e denunciar minha própria cumplicidade com a opressão contra a qual eu estava tentando ajudar meus alunos a resistirem".
Invertendo a argumentação da maioria dos textos do livro, coloca um desafio interessante: "Trabalhando predominantemente com brancos, nos últimos sete anos, na Miami University de Ohio, convenci-me que os educadores progressistas têm obrigação de trabalhar com os não-pobres tanto quanto com os pobres. Isso também é um desafio para a pedagogia freireana. Para convencer os estudantes norte-americanos privilegiados de que a opressão existe numa proporção extensa também na nossa sociedade, foi um grande desafio que enfrentei".
Mas, falando assim, MacLaren não quer dizer que estaria pensando no esgotamento da pedagogia freireana diante dos problemas do mundo atual. Ao contrário, acredita que ela está apta a encarar "o desafio pós-moderno de encontrar novas formas para enfrentar nossas próprias fragilidades e finitudes como cidadãos globais", sem que, para isso, tenhamos de parar de "continuar sonhando com a utopia" (págs. 587-9).
Ora, ao mostrar como a pedagogia de Paulo Freire está sendo lida e problematizada nos Estados Unidos, MacLaren nos leva a pensar numa nova carta lobatiana. Uma carta que falasse não somente do legado cultural dos Estados Unidos e da Europa, que absorvemos e que deveríamos absorver, mas também do que fizemos com esse legado e de que maneira o Primeiro Mundo está se utilizando dele para reconhecer suas próprias falhas internas. Essa nova carta talvez pudesse terminar assim: "Estou lendo um livro a galope, lendo um livro que vai levando uma grande coisa para a América: o Anísio lapidado pelo Brasil".

Nota:
1. In Fernando de Azevedo, "Figuras do Meu Convívio" (Melhoramentos).

Texto Anterior: Tristan Corbière, segundo Siscar
Próximo Texto: A interiorização da metrópole
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.