São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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A interiorização da metrópole

EVALDO CABRAL DE MELLO

intencionalmente escrita no propósito de desmentir os velhos chavões relativos a D. João 6º, esta obra de Oliveira Lima reaparece nas livrarias no momento oportuno em que a cinematografia brasileira procura recuperar, com ar de quem descobriu a pólvora, os clichês outrora vigentes na historiografia do período joanino. É certo que os reis e príncipes da dinastia dos Braganças não foram nunca personagens propriamente carismáticos. A mediocridade, a carolice, a doença, a boçalidade pura e simples, foram a sua marca registrada. (E até mesmo a crueldade: o infante D. Francisco, irmão de D. João 5º , divertia-se nas janelas do paço fazendo pontaria nos marinheiros que tripulavam as naus fundeadas do Tejo). Contudo, nesta galeria pouco entusiasmante, que dorme seu sono eterno no panteão de São Vicente de Fora, D. João 6º e seu tataravô, D. João 4º, o primeiro monarca da família, bem merecem a exceção de serem encarados, se não com admiração, ao menos com simpatia.
O reinado de ambos coincidiu com duas fases particularmente atormentadas da nossa história. (E digo propositadamente nossa história, porque os brasileiros têm o vezo de ignorar ou de esquecer que têm o mesmo direito que os portugueses a toda a história de Portugal até 1822; Fernão Lopes ou o mestre de Avis são tão nossos quanto deles). Frente à guerra de independência contra a Espanha na Europa e contra a Holanda no Brasil e no Oriente, ou em meio ao redemoinho dos conflitos europeus de finais do século 18 e começos do 19, tanto D. João 4º como D. João 6º souberam instrumentalizar sua inata indecisão e cautela, transformando-as em métodos de ação política que, no final das contas, se revelaram os mais adequados à precariedade da conjuntura em que operavam. Em Portugal, nem o reinado de um nem a regência do outro prestavam-se evidentemente a espanholadas ou a grandes gestos heróicos. Os tempos requeriam antes a gestão sinuosa e sonsa dos negócios, o recurso permanente à astúcia e à dissimulação, elevadas, desde os séculos 16 e 17 na Europa da Contra Reforma, à categoria de arte política alternativa ao maquiavelismo, de que, segundo os teólogos, o príncipe católico devia fugir como o diabo da cruz. Neste sentido, pode-se afirmar que, por uma feliz coincidência, ambos monarcas foram personalidades bem adequadas às circunstâncias internacionais com que o país se defrontava.
"D. João 6º no Brasil" constitui evidentemente a obra máxima de Oliveira Lima, aquela em que melhor se conciliaram, de um lado, seu gosto pela pesquisa histórica, despertado na sua infância recifense por um tio desembargador, que lhe presenteou com uma coleção da "Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano"; e, de outro, a experiência adquirida na carreira de diplomata, para a qual seria nomeado, ainda muito jovem, graças à proteção de um conterrâneo, o barão de Lucena, então ministro do primeiro governo republicano. Não é sem certa surpresa que se constata que este livro foi escrito quando o autor ainda estava nos seus trinta e tantos anos. Via-de-regra, os grandes livros de história são frutos da maturidade, quando já se teve o tempo indispensável para aliar a investigação à capacidade de síntese, destacando-as em algo sólido. Ademais, no caso de um tema como o de Oliveira Lima, tornava-se necessária a frequentação de arquivos estrangeiros numa época em que não havia nem xerox nem microfilme e, às vezes, nem sequer uma classificação dos acervos.
Se sua condição de diplomata facilitou-lhe o acesso à documentação existente na França ou nos Estados Unidos, suas prolongadas ausências no exterior estorvaram inescapavelmente a consulta das fontes brasileiras, igualmente indispensáveis. Não fosse a perseguição que lhe moveu o barão do Rio Branco, todo-poderoso ministro das relações exteriores da época, relegando-o aos corredores da Secretaria de Estado, e Oliveira Lima não teria disposto dos vagares para trabalhar no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e no próprio arquivo do Itamaraty e da legação dos Estados Unidos no Rio. Sem saber, o barão prestava uma grande contribuição à historiografia brasileira. Caso tivesse previsto o efeito perverso da sua decisão administrativa, o provável é que tivesse revisto sua recusa em dar ao historiador o posto condigno a que tinha direito.
A presença na colônia, por mais de dez anos, de um monarca europeu, não isolado ou destronado, como Napoleão em Santa Helena, mas à frente do aparelho de Estado e cercado da sua Corte, constitui um desses episódios que fazem do livro de história algo de infinitamente mais rico do que a obra de ficção. (Dificilmente um romancista hispano-americano teria conseguido imaginar situação mais improvável. O que não impede que a ficção incentive muita vocação historiográfica, como indica o exemplo ilustríssimo de Ranke, que descobriu a história através dos romances de Walter Scott). A Oliveira Lima não escapou o que a convencionalmente chamada "transmigração da família real portuguesa" comportava de incongruente e até de meramente pitoresco na paisagem carioca de começos do século 19. Diante dela, o historiador deve ter tido a mesma sensação de incompatibilidade que acode a um brasileiro de hoje que contemple certa fotografia da inauguração de Brasília, em que um grupo de diplomatas estrangeiros, vestido de fraque, atravessa a pé a desolação do cerrado a caminho de alguma solenidade.
Mas evidentemente o essencial do episódio não residiu nestes aspectos superficialmente cenográficos. Ele consistiu, primeiro, no fato de que, pela única vez na história do colonialismo europeu, o aparato estatal da monarquia transferia-se de armas e bagagens para a colônia e, ao fazê-lo, "interiorizava" a metrópole, para usar a fórmula que Maria Odila Silva Dias utilizou há anos para caracterizar a situação verdadeiramente anômala dentro da qual se ia desencadear o movimento da Independência e da criação do estado nacional no Brasil. Em segundo lugar, em que, uma vez instalados no Rio de Janeiro, D. João 6º e seus ministros não se limitaram a inaugurar na nova terra aquelas instituições indispensáveis ao funcionamento do governo central, isto é, a parafernália de repartições públicas, imprensa régia, biblioteca, banco, para não falar nos gastos de ostentação, como jardim botânico ou missão francesa, de cujo simbolismo necessitam os Estados, não menos que os indivíduos.
Ao contrário, transformando hipotecas em ativos, eles souberam capitalizar a marginalização internacional a que Portugal ficara relegado, inicialmente pela ocupação francesa da metrópole, depois, uma vez expulso o exército napoleônico, pelo protetorado de fato que a Inglaterra exerceu em Lisboa. Destarte, D. João 6º e sua equipe puderam tirar todo o partido possível da distância em que se encontravam dos centros europeus de poder, para seguir no Prata, na Guiana ou na questão do tráfico de escravos, a política que, a seu ver, mais convinha aos interesses portugueses globalmente compreendidos. Política que, caso tivessem permanecido na Europa, não teriam podido executar, seja por que a El Rei teria ocorrido, como a Carlos 4º da Espanha, a detenção melancólica, embora decorosa, em algum castelo do Loire, seja porque, uma vez restituído ao trono, não disporia da necessária margem de manobra "vis-à-vis" da Inglaterra e da coalizão de potências que havia triunfado sobre Napoleão.
A verdade é que manobrar internacionalmente do Brasil era bem menos arriscado. Como na cadeira de balanço da definição de um político norte-americano, tem-se "uma sensação de movimento sem se correr perigo". É inegável que alguns dos ministros de D. João 6º, como Linhares e depois Palmela, tiveram uma visão imperial (imperial, note-se bem, não imperialista, tanto mais que Portugal não se podia dar então ao luxo do imperialismo). Sobreveio-lhe, porém, o destino que é muitas vezes o dessas visões imperiais, o de frustrar-se pela incompreensão dos particularismos, no caso, o do Portugal metropolitano, que prejudicado pelo fim do monopólio comercial, passou a considerar-se vítima de uma inversão violenta dos papéis, que o reduzia ao papel de colônia brasileira. O que não quer dizer que a incompreensão tivesse partido apenas de Portugal. O Brasil não se teria mostrado mais flexível. A realidade era que o êxito de qualquer fórmula constitucional que mantivesse a união dos dois reinos dependia fundamentalmente da questão do comércio. A substituição do monopólio colonial por um sistema de preferências comerciais entre Portugal e o Brasil, substituição de que se cogitou na época, era insuficiente para a metrópole, inaceitável para nós e intolerável para a Inglaterra, que desejava aumentar e não reduzir os favores obtidos pelos tratados de 1810.
Seria ocioso e até impossível procurar contabilizar o que na diplomacia carioca de D. João 6º se deveu a ele, de um lado, e do outro, aos seus ministros. Em resposta aos detratores do monarca, bastaria assinalar que ele soube reunir em torno de si, ao lado da inevitável mediocridade e acanhamento mental dos áulicos, fenômeno que é de todos os governos e de todos os regimes, um grupo em que estavam representados o impulso inovador de um Linhares, a experiência internacional de um conde da Barca ou de um Palmela e o espírito cauteloso e rotineiro de um velho burocrata do feitio de Tomás Antônio Vilanova Portugal.
El Rei não foi obviamente um formulador de políticas, contentando-se, e não era pouco, com o papel de "honest broker" das pressões contrárias que se exerciam sobre ele. Mas as iniciativas que tomou nos seus anos de Brasil, tanto no plano doméstico quanto no internacional, indicam que possuía o dom do homem de Estado que consiste em saber avaliar o merecimento das políticas que lhe propunham, e sobretudo, na capacidade de distinguir o que era factível do que não era, o que não significa necessariamente que todo o factível venha a concretizar-se, mas apenas que havia uma margem razoável de chance de que pudesse traduzir-se em realidade. Pouco importa que o principal projeto internacional de D. João 6º, a anexação da Cisplatina, tenha sido frustrado já no reinado de seu filho, o primeiro Imperador. Nem todos os projetos do "rei velho", como depois ele será carinhosamente chamado entre nós, deram certo, mas não se lhes pode negar, e isto é o essencial, que tinham uma grande possibilidade de darem. E isto é o quanto basta ao animal verdadeiramente político. Afinal de contas, se a ação política se reduzisse a executar apenas aquilo que tem todas as possibilidades de dar certo, ela perderia toda dramaticidade e, portanto, todo interesse humano e histórico, passando a ser uma atividade robótica.
A capacidade de manobra não abandonou D. João 6º sequer na tristonha fase final de sua existência, isto é, após o regresso a Lisboa, que sinceramente lamentou. Em meio às pressões de liberais e de absolutistas, tão sectários uns quanto os outros, inclusive as pressões da própria família, também politicamente dividida, seu papel foi fundamentalmente poupar o Reino de experiências mais dolorosas do que as periódicas crises políticas que o golpearam naqueles anos. O leitor interessado na continuação da história, do seu falecimento em 1826, sob suspeita de envenenamento, à eclosão da guerra civil entre seus filhos, pode recorrer a dois outros livros de Oliveira Lima, intitulados "D. Pedro e D. Miguel. A Querela da Sucessão" e "D. Miguel no Trono".
Após o interregno absolutista do mano Miguel, D. Pedro, agora simples duque de Bragança, após haver abdicado sua coroa portuguesa e sua coroa de imperador do Brasil, implantou finalmente em Portugal, com a ajuda da França e da Inglaterra, a Carta, isto é, o regime constitucional, regime que, com vários atropelos, sobreviveria na sua filha e nos seus descendentes até o golpe republicano de 1910. O que não deixa de ser irônico é que, com seus modos estabanados de "playboy", D. Pedro se tivesse tornado, de ambos lados do Atlântico, o fundador de instituições liberais de governo, para o exercício quotidiano das quais seu pai estava muito mais temperamentalmente adaptado do que o filho autoritário.
Ao perpassar as páginas do livro de Oliveira Lima, caberia invocar o testemunho insuspeito de um inglês, William Beckford, então já consagrado autor do "Vathek" e herdeiro da principal fortuna açucareira da Jamaica. Beckford nada tinha de áulico; ao contrário, era indivíduo extremamente crítico e até desabusado. E, contudo, no mais delicioso livro que estrangeiro algum escreveu acerca de Portugal, as "Recordações de uma Excursão aos Mosteiros de Alcobaça e Batalha", Beckford deixou o registro da impressão favorável que recebera do príncipe D. João, ao visitá-lo em Queluz, já na sua condição de Regente "de facto", a que ascendera recentemente devido a doença da mãe, D. Maria 1ª. Exceto no tocante à aparência física, as expressões do inglês são de louvor. O príncipe, acentuava, tinha uma expressão de sagacidade e de bondade e falava a língua portuguesa "com mais pureza e eloquência" do que qualquer português. Além de indivíduo articulado, o príncipe era dono também de grande senso de humor, embora Beckford qualifique este humor joanino, assinalando seu caráter nacional, o que era uma maneira de dizer que, neste particular, D. João compartilhava com os súditos o gosto da chocarrice, que é forma portuguesa de humor. Como observou Oliveira Lima, "os estrangeiros sempre lhe fizeram justiça".

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