São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A revolução de 64 não era para durar"

COSETTE ALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em depoimento dado em 93, o presidente Geisel fala sobre sua infância e os bastidores do poder

Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, deixou sua pátria aos 88 anos, na quinta-feira, 12 de setembro de 1996, às 11h52, na clínica São Vicente, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro.
Quarto presidente do governo militar, discreto e austero, não gostava nem de homenagens nem de entrevistas. Fui recebida por ele no dia 27 de janeiro de 1993, depois de muita insistência.
Homens públicos têm missões impossíveis que só podem ser avaliadas dentro do tempo em que viveram. Estadistas serão julgados pela história.
Ainda é cedo, mas aposto que o tempo reconhecerá no presidente Geisel um estadista.
Durante seu período de governo, o país enfrentou a crise do petróleo com política econômica ativa e muitos investimentos. Teve atitude corajosa contra a chamada "linha dura" do Exército. Indignado contra a tortura, demitiu o comandante do 2º Exército, general Ednardo d'Ávilla Mello, e o ministro do Exército, Silvio Frota. Usou seu poder para iniciar o processo de democratização, "lenta, segura e gradualmente".
Geisel tinha um projeto para o Brasil e, apesar de me dizer que se sentiu aliviado quando deixou o cargo, acompanhava com apreensão todos os acontecimentos que machucavam o país.
Via o desemprego como um problema "dramático", responsável pelo crescimento da violência e da barbárie. Considerava fundamental acabar com a inflação, mas combatê-la com recessão o afligia.
Na entrevista que se segue, fala sobre a infância, sua vida e participação política. Ela pode dar ao leitor uma pequena idéia da figura humana que foi Ernesto Geisel.
*
Folha - Presidente, o sr. nunca deu entrevistas para jornais ou revistas. Por quê?
Geisel - Acho que meu papel na vida pública se encerrou quando deixei a Presidência. Tive a preocupação de não perturbar aqueles que vieram depois, com declarações, observações e críticas.
Folha - O sr. pode falar de Bento Gonçalves, onde nasceu?
Geisel - Era uma cidadezinha, aliás uma vila, encaixada na parte baixa da região, cercada de morros. Quase todas as famílias eram de origem italiana. Havia algumas alemãs, entre elas a minha. Ali me criei, estudei e convivi com os meninos italianos, claro que com restrições.
Folha - Que restrições?
Geisel - Meus pais não aceitavam alguns hábitos dos italianos, como a garotada toda na rua, suja, brincando, fazendo as suas artes. Ele achava que nós tínhamos que brincar na nossa casa.
Folha - Uma lembrança da meninice... O sr. era uma criança travessa ou introvertida?
Geisel - Eu era o filho mais moço numa família de pobres. Todos me tratavam com muito carinho. Era um menino comportado, talvez um pouco tímido. Não era dado a "artes". Outra lembrança é que não havia luz elétrica. A iluminação era lampião a querosene. Um de nós tinha que cuidar todos os dias do lampião. Não havia água encanada e telefone.
Lembro que íamos a Porto Alegre em diligências, tipo aquelas americanas. Levávamos entre uma hora e meia e duas horas até uma estação de trem de estrada, a Carlos Barbosa.
Folha - E seu pai?
Geisel - Meu pai era alemão. Ficou órfão de mãe aos 3 anos e aos 7 ficou órfão de pai. O pai dele era professor, reitor de escola na Alemanha. Tinha um irmão que era mais moço e tinha irmãs... Uma família sem grandes recursos. Vivia do salário do meu avô.
Meu pai foi internado num orfanato, onde estudou. Chegou a fazer grande parte do curso secundário. Falava francês, conhecia latim, se formou em horticultura. Mas cedo, com 16 ou 17 anos, se engajou numa empresa agrícola e veio para o Brasil. Isso lá por 1884. Ele nasceu em 1867.
No Brasil, foi estudando português e trabalhou numa cutelaria. Depois foi a Porto Alegre e passou num concurso para professor primário, numa escola do município de Estrela. Foi aí, eu acho, que conheceu minha mãe. Havia uma grande diferença de idade entre eles, 12 ou 13 anos.
Era um homem severo, mas humano. Lembro que, muitas vezes, de manhã, quando a gente ia para a escola, ele inspecionava se nossos sapatos e unhas estavam limpos, dentes escovados, cabelo penteado, roupa em ordem. No fim, se tornou um grande amigo nosso. Ele faleceu cedo, com 70 anos.
Folha - Como era sua mãe?
Geisel - Minha mãe era uma grande senhora. Brasileira, filha de alemães. Dona-de-casa, trabalhava muito. Era com quem convivíamos mais. Quando queríamos alguma coisa, falávamos com ela. Nossa família era de classe média, mas com vida muito controlada. Era o esteio da família. Faleceu aos 50 anos, com câncer no intestino.
Folha - O sr. se entendia mais com seu pai ou com sua mãe?
Geisel - Com minha mãe... Não quer dizer que eu não conversasse ou não tivesse entendimento com meu pai. Mas tinha mais liberdade com minha mãe. Por exemplo: foi ela que me ensinou a ler. Quando fui para o colégio, com 6 anos, já sabia ler. Isso é inesquecível.
Folha - O que o levou a escolher a carreira militar?
Geisel - Várias razões. Onde vivíamos só havia escola primária. Havia alguns cursos secundários pelo Estado, mas muitos de natureza religiosa. Nós não éramos católicos, mas protestantes.
O colégio militar cobrava um preço relativamente módico. Além disso, nos criamos convivendo com os problemas da Primeira Guerra Mundial. E o militar no Brasil tinha, na época, um status dentro da sociedade.
Meus dois irmãos foram para o colégio militar. Nas férias, apareciam fardados e contavam histórias. Eu os segui naturalmente.
Folha - Como é que o sr. conheceu dona Lucy?
Geisel - Ela é minha prima. Nossas mães eram irmãs. Sou dez anos mais velho. Às vezes, ia passar as férias na casa de minha avó ou na de meus tios. Lá a conheci, criança pequena. Quando casamos, tinha 32 anos.
Folha - Algum arrependimento?
Geisel - Não, eu posso ter cometido muitos erros, mas nada de importante que me leve a isso.
Folha - Algum ressentimento da época em que foi presidente?
Geisel - O cargo de presidente, se o sujeito se dedicar e olhar honestamente, é muito penoso, com todas as restrições e responsabilidades. O dia mais feliz para mim foi o dia em que saí do governo.
Folha - O sr. é a favor do aborto?
Geisel - Em certos casos. Acho que tem que ser limitado. Não pode ser praticado como ele é praticado, sem responsabilidades, e muitas vezes sem a adequada qualificação médica. Acho que deve ser legalizado para certos casos.
Folha - O sr. acha que falta um projeto para o Brasil?
Geisel - É muito difícil falar sobre a conjuntura brasileira. Acho que a maior desgraça para o país é a recessão. A massa de desempregados que o Brasil tem. Veja o seguinte: o operário de um certo nível, com a família organizada, é de repente demitido. Procura emprego e não encontra. Vai ser camelô. Se não acertar como camelô, o que vai fazer? Come o dinheiro do fundo de garantia, come o dinheiro do seguro-desemprego, depois vende o automóvel de terceira ou quarta mão. Se tem uma casinha, é capaz de vendê-la. Daí a pouco não tem dinheiro para remédio, para a escola, não pode cuidar dos filhos, alimentá-los direito. O que vai fazer? Vai roubar. Depois vai assaltar ou acabar sendo sequestrador. Sei que é difícil, mas uma das coisas que se tem que fazer nesse país é acabar com a recessão. O desemprego é um drama.
Folha - O que o sr. acha da discussão sobre a "modernidade" para o país?
Geisel - É uma tolice. Pegar um país como o nosso e tratá-lo como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. é uma estupidez. Esses países não têm que fazer maiores investimentos em infra-estrutura. Tudo está feito.
No Brasil está tudo por fazer. Os hospitais são insuficientes, as escolas são insuficientes, as estradas não prestam, estão esburacadas e são insuficientes... Botar modernidade aqui é uma estupidez.
Folha - O que fazer, então?
Geisel - Quando estava no governo procurei desenvolver a agricultura. Eu acho que o Brasil ainda é fundamentalmente um país agrícola. O que se precisa na agricultura, além da reforma agrária, que não deslancha, é o problema das máquinas, dos defensivos, adubos, o transporte e o armazenamento. Acho que é um setor que precisava receber mais atenção.
Folha - O sr. começou a distensão e deu os primeiros passos que foram definitivos para a abertura. Por que fez isso?
Geisel - A revolução de 64 não foi uma revolução para ficar, ela foi feita contra o governo do Jango Goulart, que estava enveredando demagogicamente para a esquerda. Ao contrário do que se diz, não foi um golpe das Forças Armadas. As Forças Armadas foram ao encontro de correntes políticas. O governador de Minas, Magalhães Pinto, era revolucionário, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, era revolucionário, o governador do Rio Grande do Sul, Meneghetti, era revolucionário...
Veja que a revolução começou em Minas com o apoio do governador de Minas. Hoje em dia se diz, o golpe militar... Não foi golpe militar. Foi uma revolução que teve grande participação popular.
O governo tinha fomentado a indisciplina nas Forças Armadas, com aquela revolta dos marinheiros. O Jango começou a dar entrevista para sargentos, querendo jogá-los contra os oficiais.
A revolução foi necessária, mas não era para durar. O governo Castello Branco também enfrentou uma recessão e uma inflação e conseguiu resolver o problema. Quando ele terminou seu mandato, o país estava em boas condições. Mas aí começaram os movimentos da esquerda. Cobrando os estudantes, sequestrando embaixadores, praticando uma série de atentados.
Veio, então, a reação, que foi se prolongando. Quando eu assumi o governo já não havia grande oposição da esquerda. Havia focos, mas o quadro já era melhor.
Achei que já não havia mais razão para continuar essa revolução, que ela estava se prolongando muito.
Mas para acabar não podia ser de chofre. Havia sempre o perigo de um retorno. Então, na minha posse, eu usei uma expressão: era preciso ir para a distensão, que deveria ser lenta, gradual e segura. E isso foi feito durante o meu governo. Eu acabei com a censura na imprensa progressivamente.
Folha - O Exército estava dividido com a abertura?
Geisel - As Forças Armadas, desde o tempo do governo Castello Branco, ficaram divididas em duas correntes. Havia uma corrente que queria resolver os problemas e acabar com esse regime revolucionário, e havia uma outra corrente, que é uma linha que nós chamamos a "linha dura", que queria de qualquer maneira continuar.
No meu governo isso ainda continuou, embora atenuado. Mas o ministro Frota era da linha dura. Por isso eu o demiti.
Lembro que, quando eu resolvi reconhecer o governo da China, tive que gastar horas procurando convencer o ministro do Exército, o ministro da Marinha... Isso é uma bobagem! A mesma coisa com Angola. Eu disse: "Mas vem cá, nós temos relações com a Rússia, por que não podemos ter com Angola? Por que é que eu não vou reconhecer?" Falo isso para você saber que havia uma dificuldade.
Folha - O sr. acha que valeu a pena a democracia para o Brasil?
Geisel - Não podia permanecer aquilo mesmo... Mas fomos cair na vala comum. Eu disse que nossa democracia era relativa e me condenaram. Disseram que democracia não se adjetivava.
Mas eu acho que num país como o Brasil, onde existe essa grande quantidade de analfabetos, famigerados, favelados etc., não podemos, na prática, ter uma democracia completa, perfeita. Essa Constituição que fizeram é utópica. O país não está preparado para isso. Dar o voto para um menino de 16 anos! Voto para o analfabeto e por aí afora... Por quê? O resultado é que acabamos elegendo Collor. Respondendo sua pergunta, valeu a pena porque não podia continuar.
Folha - Presidente, o sr. acredita que a economia de mercado pode funcionar para o Brasil?
Geisel - Pode, mas tem que ter de vez em quando algumas medidas de controle.
Folha - O que o sr. pensa da elite brasileira?
Geisel - Eu acho que a elite é pobre. A elite não está à altura do problema nacional.
Folha - Qual a sua opinião sobre o voto secreto?
Geisel - Eu não sou contra o voto secreto, eu sou contra esse voto amplo, todo mundo votar. Agora, o voto secreto foi uma revolução, mas o resultado nas Câmaras, no Congresso, foi para pior, na qualidade do representante.
Folha - O sr. é a favor de uma Lei de Imprensa para o Brasil?
Geisel - Acho que tem que haver sim. Eu sou favorável à liberdade de imprensa, mas com responsabilidade. Tem que haver a responsabilidade do diretor do jornal ou de quem escreveu.
Na televisão muito mais. A TV é indiscutivelmente um grande avanço, mas como está... Veja o seguinte: a criança em casa, o estudante, o rapaz, a menina. Ficam horas e horas grudados na televisão vendo bobagem -vendo a Xuxa. E há programas eróticos -o próprio programa da Xuxa chega a ser erótico às vezes. Isso vai deformando a criança prematuramente.
As novelas também são muito escabrosas. Veja que a televisão é monopólio do Estado. Não sei como está na Constituição atual, mas é monopólio do Estado, que pode estabelecer condições para essa concessão.
Folha - O sr. acha que a privatização representa uma das soluções para o Brasil?
Geisel - Eu sou contra essa privatização feita assim. Há muita porcaria, muita coisa que deve valer ser vendida, mas se desfazer de tudo, como querem, é uma bobagem. Veja o seguinte: o Brasil não tem capitais. Não tem capitais inclusive para fazer investimentos. E aí vem essa história de criar competitividade. Você, para criar competitividade numa indústria, tem que procurar ter desenvolvimento tecnológico. Depois tem que fazer investimentos, não só no desenvolvimento tecnológico, mas também nos equipamentos. Você tem que aplicar recursos. Esses recursos vêm de onde?
A Inglaterra privatizou tudo com a sra. Thatcher. Mas aquela terra tem dinheiro sobrando. O México privatiza com o dinheiro americano. E nós vamos privatizar com quê? O governo acaba admitindo que o sujeito pague com títulos da dívida, a tal moeda podre. A privatização é uma idéia certa, mas tem que ser bem avaliada e tem que se avaliar o que deve e não deve ser privatizado.
Folha - Na sua opinião, qual o melhor presidente do Brasil nos últimos 30 anos?
Geisel - O Castello Branco.
Folha - O que o sr. acha do Golbery?
Geisel - Era muito interessante, era muito meu amigo. Ele era mais moderno do que eu. Chamavam o Golbery de bruxo, como se fosse alguém maquiavélico. Fizeram todo um mito em torno dele. Ele era um homem inteligente, culto, preparado, honesto e colaborou muito. Foi uma perda.
Folha - Inflação e crescimento. O que fazer?
Geisel - Não é possível só se combater a inflação sem pensar em crescimento. O Brasil teria que, todo ano, gerar mais 1 milhão de empregos, independentemente desses que já estão aí.
Folha - O senhor é feliz?
Geisel - Acho que sim. Quer dizer, a gente nunca se sente completamente feliz. Tenho uma família, mas tenho também um drama na vida: eu perdi um filho, que era muito promissor, aos 16, 17 anos. Mais velho que Amália. Foi uma fatalidade incrível. A nossa residência ficava num quartel e no meio a estrada de ferro. Tinha uma passagem de nível que você precisava atravessar. Não tinha porteira, não tinha nada. Havia um campo de futebol perto, e meu filho foi para lá de bicicleta. Ao atravessar a linha da estrada de ferro foi colhido por um trem. Podia ser evitado? Não podia? Não adianta. Aconteceu, o que se vai fazer. Sofri pessoalmente e sofri vendo minha mulher sofrer.

Texto Anterior: Especialista diz que problema é político
Próximo Texto: A retirada de Geisel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.