São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A retirada de Geisel

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

O Brasil, que adora canonizar mortos, vai quase transformando o luterano Ernesto Geisel no santo oficial do regime militar.
Que o quarto presidente de turno do movimento de 64 teve sua importância histórica, é inegável. Percebeu o que estava acontecendo e procurou encontrar saídas.
Mas saudá-lo como o general que acabou com a ditadura já é uma incontível tendência à pizza histórica e ideológica.
Geisel era um militar de extrema-direita, sem convicção democrática.
Duro e soturno descendente de alemães, era, por princípio, contrário a eleições diretas e à autonomia do Congresso -que fechou, sem cerimônia, para evitar uma derrota eleitoral.
Morreu acreditando que jovens de 16 anos e analfabetos não podem votar e que a democracia era apenas aceitável, uma vez que um regime de corte autoritário tornara-se inviável.
Foi um dos mentores do plúmbeo SNI, cassou direitos políticos, censurou músicas, livros, filmes, jornais, peças de teatro.
Endividou o país, promoveu a estatização e firmou um acordo nuclear absolutamente estúpido com a Alemanha.
Tive amigos presos e torturados sob seu governo -que coincidiu com minha vida universitária. Era obrigado a ter aulas de propaganda autoritária numa universidade sob permanente ameaça policial. Líamos, em espanhol, livros (ou cópias mimeografadas) de textos de filosofia e sociologia proibidos pelo regime.
Muita gente -como Vladimir Herzog- foi morta ou desapareceu durante a chamada "abertura" de Geisel.
Sua distensão "lenta, gradual e segura" foi simplesmente uma tentativa de retirada organizada, sem perda de controle, para um regime que começava a se deteriorar, enfrentando pressões crescentes da sociedade civil e do exterior.
Mérito? Bem, qualquer militar minimamente formado deve saber a hora de organizar o recuo.
Geisel deixou-nos com Figueiredo, e o retorno à democracia só ocorreu dez anos depois do fim do seu "mandato", que começou dez anos depois de março de 64.
Ainda está por ser escrita a história da corrupção, das comissões e desvios entre seus assessores, naquele período de obras colossais.
Muita gente, sob o fascínio do poder absoluto, tentou descobrir no governo Geisel uma faceta "intelectual", especialmente através da figura de Golbery do Couto e Silva.
O "mentor" da abertura foi até chamado de "gênio" por Glauber Rocha, que acreditava numa guinada terceiro-mundista das Forças Armadas, à moda peruana.
Os admiradores de Golbery contribuíram, apenas, para dotar de algum glamour o ex-chefe do SNI, cujo pensamento era óbvio.
Geisel, nacional-estatista, teve atritos com os EUA e colocou o Brasil na diplomacia do Terceiro Mundo. Namorou a China e reconheceu Angola. Receita compartilhada teoricamente por setores da esquerda (o que ajuda a explicar Glauber), mas que hoje seria considerada na contramão da história.
Sempre é possível dizer que poderia ter sido pior e que o presidente deve ser julgado dentro de um determinado contexto. É provável até que Geisel venha a ganhar no Brasil fumaças de grande "estadista".
Mas entrará para a história universal como mais um mero chefe de governo militar latino-americano.

Texto Anterior: "A revolução de 64 não era para durar"
Próximo Texto: UDR do Pontal vai combater sem-terra
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.