São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Especialista prega reforma agrária radical

ABNOR GONDIM
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O assentamento de sem-terra em áreas produtivas e com infra-estrutura ativa o comércio e a indústria, afirma Marc Dufumier, 50, doutor em agronomia pela Universidade Sorbonne (Paris 1) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação).
Dufumier prevê o fracasso da reforma agrária se o governo não assentar em áreas pobres da Amazônia e do Centro-Oeste.
"É melhor gastar mais dando terras boas aos sem-terra do que arcar com o aumento da delinquência nas cidades", diz.
Suas convicções baseiam-se nas experiências da Coréia do Sul e de Taiwan, dois dos "tigres asiáticos", onde a industrialização cresceu porque houve reforma agrária radical, e os produtores rurais passaram a ter poder de compra.
Ele falou à Folha após passar dois meses nas cinco regiões do Brasil dando cursos a técnicos sobre projetos de reforma agrária e agricultura familiar.
Em Promissão (SP), notou que um assentamento de sem-terra incrementou o comércio local.
*
Folha - Reforma agrária dá lucro?
Marc Dufumier - A reforma agrária tem sentido econômico, não é somente questão de justiça social. Ela reforça a agricultura familiar, que tem se mostrado mais produtiva do que a empresarial por unidade de superfície.
Folha - Grandes produtores de soja no país afirmam que é loucura pensar que a pequena propriedade vai garantir a geração de divisas, porque ela não produz soja em larga escala, por exemplo. O que o sr. acha disso?
Dufumier - Os produtores familiares manejam sistemas muito mais diversificados. Não se especializam num só cultivo, como soja ou trigo. A produção familiar gera divisas até por evitar a importação de certos produtos. A soja é um monocultivo que destrói o ecossistema. A agricultura familiar leva mais em conta microclimas.
Folha - O que o sr. acha da pesquisa encomendada pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura), que apontou em R$ 132 a renda das famílias assentadas pela reforma agrária, além de dizer que elas não têm tecnologia e que um terço vende suas terras?
Dufumier - É óbvio que a reforma agrária não é um sucesso total, principalmente quando acontece em terras marginais, como vimos em Nova Xavantina (MT). O produtor precisa de muito capital para valorizar a terra. Quando a reforma agrária é feita em terras melhores, como em Promissão (SP), gera riqueza.
Folha - O que o sr. viu em Nova Xavantina?
Dufumier - Num assentamento chamado Piau, distribuíram 100 hectares para cada assentado. Como são terras pobres, a idéia do governo é dar mais terra. Isso é errado. Um produtor com cinco vacas não pode explorar toda a superfície e vai se descapitalizar.
A reforma agrária adequada é dar menos superfície, mas terras boas e crédito adequado.
Folha - A reforma agrária não precisa de grandes áreas ruins?
Dufumier - Esse problema é maior no Brasil, porque só se distribuem terras marginais. Em Nova Xavantina, são terras difíceis para cultivo e gado.
A reforma agrária necessita de muita terra boa para ser repartida entre os sem-terra e desempregados a fim de gerar emprego para gente que usa a mão-de-obra familiar e melhorar o nível de vida.
Folha - O custo da reforma agrária não aumentará com o uso de terras melhores?
Dufumier - Somente aumentaria o custo da indenização. Em Promissão (SP), onde os produtores têm boa renda, a área do assentamento já tinha eletricidade, infra-estrutura.
Em Piau (MT), o custo será enorme para fazer tudo isso. Em Promissão, os lotes são de 10 hectares, mas os assentados alcançam alta produtividade. O importante é que a produção familiar nunca desemprega sua própria força de trabalho para mecanizar.
Folha - Isso não é atraso, quando o mundo se direciona para o avanço tecnológico e a diminuição de custos?
Dufumier - Atraso é desempregar gente para encher as favelas nas cidades. Isso custa mais para o Brasil. Reforma agrária significa, por exemplo, menos custo nas favelas do Rio de Janeiro, mais turistas na cidade.
A ferramenta manual parece arcaica, mas é extremamente produtiva porque maneja hortas, frutas.
Folha - Nos assentamentos, não se criaram favelas rurais?
Dufumier - Criado há oito anos, o assentamento em Promissão não tem nada a ver com favela. O gerente do supermercado da cidade está feliz porque os assentados lhe fornecem hortaliças e compram produtos de primeira necessidade.
Na maioria dos assentamentos, as famílias ganham dois salários mínimos, o que é muito mais do que ganha um desempregado.
Folha - Por que a FAO considera a agricultura familiar mais eficiente do que a empresarial?
Dufumier - Em São Miguel do Guamá, no Pará, vimos que o gado de corte gera valor agregado de R$ 20 por hectare. Os sistemas familiares geram mais de R$ 100 por hectare com consórcios de cultivos e rodízio das áreas cultivadas para não degradar o solo.
Valor agregado é toda a produção menos os custos de produção e da depreciação das máquinas.
Folha - Como é a experiência da agricultura familiar na Europa?
Dufumier - Na Europa, a agricultura é fundamentalmente familiar. Na França, só temos agricultura capitalista na produção de uvas. O resto é formado por produtores familiares e empregados eventuais.
Nos Estados Unidos, a agricultura capitalista existe na Califórnia e na Flórida. Sobrevive com o trabalho de mexicanos clandestinos, com remuneração muito baixa.
Folha - E em outros países?
Dufumier - O mais interessante para o Brasil é observar a experiência da reforma agrária nos "tigres asiáticos". Coréia do Sul e Taiwan fizeram reformas agrárias radicais, dando lote do mesmo tamanho e gestão direta da terra a todos os produtores.
Folha - O que houve lá?
Dufumier - Com acesso ao crédito, os produtores intensificaram a produção e ganharam poder de compra, o que permitiu reativar a economia industrial.
Assim, os dois países se industrializaram sem maiores dívidas externas, porque passaram a ter mercado interno amplo e homogêneo. A idéia de fazer a reforma agrária pode ampliar o mercado interno, como ocorreu nesses países da Ásia e em Promissão, onde há terra boa.
Folha - Na maioria dos casos, as terras boas e produtivas já não são usadas pelos empresários?
Dufumier - O sistema dos grandes fazendeiros não é produtivo. Esse é o dilema.
Essa gente tem os meios para intensificar a produção, mas não o interesse em fazer isso.
Folha - Por quê?
Dufumier - Preferem investir em apartamentos nas cidades, em comércio, em especulação.
Um fazendeiro de gado de corte investe seu lucro em setores que estão fora da agricultura, porque os sistemas intensivos, com o uso de força de trabalho, não dão taxas de lucro tão altas. O lucro do campo vai para a cidade. Um agricultor familiar não faz isso.

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