São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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A possibilidade de escolher entre o bem e o mal

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lançado em meados de janeiro, o relatório "O Mistério da Salvação", elaborado pela Comissão de Doutrina da Igreja Anglicana, causou alvoroço entre a mídia e a opinião pública britânicas. Os tablóides aproveitaram o pretexto para o sensacionalismo e se saíram com manchetes anunciando a extinção do inferno. De vagar com o andor. A matéria é complicada, delicada e cheia de conotações éticas sutis.
Para esclarecer o documento, conversamos com o reverendo Jonathan Jennings, teólogo formado no King's College da Universidade de Londres e chefe do Serviço de Comunicações do Sínodo Geral da Igreja Anglicana em Westminster.
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Folha - Para começar, o sr. poderia nos dar um breve sumário dos refinamentos essenciais introduzidos por esse novo documento?
Jonathan Jennings - É preciso enfatizar de início que esse documento não significa uma mudança na doutrina essencial da Igreja Anglicana, mas uma revisão da maneira como ela tem sido interpretada, de forma a colocá-la mais sistematicamente em sintonia com o presente debate intelectual. Trata-se sobretudo de identificar os elementos chaves da doutrina relativos a essas questões e dar-lhes maior clareza à luz das preocupações do presente. Por exemplo, com relação à danação, a idéia é que ninguém tem que ir compulsoriamente para o céu. O amor de Deus se difunde por todas as dimensões, mas permanece sempre aberta a possibilidade para cada ser humano de rejeitá-lo. No que se refere à salvação, o que está dito é que não podemos acompanhar aqueles que dizem que tudo que Deus faz é bom e portanto todos seremos redimidos ao final. O que realçamos é que os homens têm o livre-arbítrio e que aqueles que recusam o elo com Deus, ao final e irrevogavelmente, serão cortados do laço com o divino. O julgamento final permanece como uma realidade. A escolha está posta.
Folha - No documento, o inferno é referido como um estado de "total não-ser". Esse conceito não seria muito filosófico e abstrato, de modo a se tornar de difícil compreensão para o bom senso mais prático dos paroquianos em geral?
Jennings - Você tem razão, o conceito soa horrível. Mas o que ele significa é a total alienação, a destruição definitiva do indivíduo. Sem as imagens que descrevem em detalhes as chamas do inferno, os tormentos e toda a parafernália sádica. Uma representação tão monstruosa, que ainda que você pudesse imaginar que existisse, seria difícil acreditar que alguém pudesse ser posto lá. O que o documento diz é que a alienação total é a realidade para aqueles que renegaram o bem e o amor de Deus, é o que os espera, é o seu destino final.
Folha - Não lhe parece que essa nova concepção rompe o equilíbrio da estrutura dualista fundamental da doutrina cristã, baseada numa clara oposição entre bem e mal, virtude e pecado, salvação e perdição? Ao enfatizar demasiado um lado ela não estaria quase dissolvendo o outro?
Jennings - Ela é uma maneira diferente de encarar essa mesma estrutura básica. A ênfase toda recai sobre o indivíduo e sua liberdade de escolha, em vez de um determinismo do bem ou do mal. Se você resiste a viver na comunhão do bem, que é Deus e decide se alienar dela, você abjurou da sua dimensão espiritual e renegou sua existência na comunidade divina. Nesse sentido, você passou de ser a não-ser, você consumou a alienação total e definitiva da sua alma.
Folha - O sr. não acha que apenas se tornar um não-ser é muito pouco para gente que infligiu deliberadamente a morte a milhões de pessoas, sob as mais horrendas formas de dor física e psicológica, como Hitler e Stálin, por exemplo? Um certo sentido instintivo de justiça não estaria sendo comprometido por aí?
Jennings - Acho que se deve evitar a tentação de fazer um juízo definitivo de qualquer indivíduo. Eu percebo o sentido do seu raciocínio, mas não posso falar nada sobre o relacionamento de Deus com nenhuma outra alma da cristandade. Não me cabe fazer comentários sobre o destino final de ninguém. Não posso dizer nada sobre o que vai suceder com gente que escolheu o mal, porque até o último momento das suas consciências eles podem definir o estatuto do seu pacto com Deus. Seu destino só será selado pela comunicação íntima entre eles e Deus. Só a Ele cabe decidir se serão recebidos na graça ou dela cortados e alienados para sempre. Os desígnios da justiça divina são um mistério para além da nossa compreensão.
Folha - O sr. acredita que o momento escolhido para a publicação do documento seja significativo, no sentido em que ele procuraria responder às atuais tensões na sociedade e nos quadros de valores?
Jennings - As grandes questões de fundo são de certo modo as mesmas que prevalecem desde o advento de Cristo. A proximidade do milênio leva as pessoas a se preocuparem mais com o futuro, projetando suas expectativas. As atuais gerações focam suas preocupações como as únicas relevantes, perdendo de vista o quadro conjunto da história. Esse documento é importante para que a igreja possa se pôr em dia com as formas de pensamento e sensibilidade que tem emergido mais recentemente. Mas não está dirigido a contemplar nenhuma situação específica ou contingente.
Folha - Esse novo ato da Igreja Anglicana vai na mesma direção e no mesmo espírito daquele anterior que autorizou a ordenação de mulheres?
Jennings - Ambas essas questões estavam pendentes e amadureceram ao ponto em que a igreja considerou e formulou respostas a elas. Elas não constituem mudanças na doutrina básica, mas reformulações desses princípios, esclarecimentos deles, correções de interpretações inadequadas. A caracterização dos suplícios e brutalidades infernais, por exemplo, nada tem a ver com a nossa sensibilidade atual. Mas o conceito fundamental de inferno permanece, como a alienação absoluta de Deus.
Folha - Situações mais específicas como a consolidação do pensamento feminista, novas percepções éticas relativas aos direitos humanos, bem estar e justiça social e as transformações tecnológicas recentes não teriam suas ressonâncias nesse documento?
Jennings - Concordo com você que têm. Essas questões porém têm a ver com o modo como pensamos e sentimos atualmente, mas não com o quadro mais fundamental da doutrina. O fato no entanto de a igreja incorporar uma nova percepção do papel, da presença e da ação da mulher na sociedade, evidentemente repercute sobre esse quadro básico e sugere as devidas reformulações de acordo com essa perspectiva. E assim também com os demais elementos que você mencionou.
Folha - Uma coisa curiosa é que muitas das demais comunidades cristãs caminham exatamente na direção oposta, reforçando o papel tradicional do diabo, do inferno, de uma moralidade restrita e uma nítida discriminação entre os sexos. É o caso da Igreja Católica e das comunidades pentecostais, que se expandem rapidamente pelos EUA e especialmente pelo Terceiro Mundo. O que lhe parece tudo isso?
Jennings - Nós não comentamos sobre os atos e práticas de outras igrejas. Não formulamos juízos sobre grupos que não comungam da nossa base doutrinária.
Folha - Há aí pelo menos uma questão comparativa, porque muitas das comunidades que assumem práticas doutrinárias regressivas parecem estar obtendo um grande e rápido sucesso em confronto com as que adotam posições mais progressistas, como é o caso da Igreja Anglicana.
Jennings - Você tem aí um caso cíclico de uma situação de expansão que é vista como sucesso e uma situação de sucesso que desencadeia maior expansão. O ciclo tende a se intensificar de tal modo que expansão e sucesso viram fins em si mesmos, em vez de serem meras decorrências de uma prática doutrinária consistente e voltada para o enriquecimento espiritual dos fiéis e a coesão da sociedade. Nesse sentido, o que é uma igreja bem-sucedida? É aquela que possui uma fórmula que atrai o maior número de pessoas? Ou aquela que melhor instrumenta o espírito das pessoas para o exercício consequente da sua liberdade de escolha?
Folha - A rapidez do processo de transformação tecnológica desloca as pessoas dos papéis convencionais e de seus sistemas de compreensão da realidade, o que gera a insegurança e o apelo a um quadro mais rígido de valores em que se apegar, como fonte de estabilidade, não é assim?
Jennings - Mas o fato persiste, que você não pode talhar uma igreja de acordo com as demandas do mercado. O mercado muda sempre. O fundamento de toda igreja instituída é a responsabilidade para com o legado doutrinário milenar que constitui a fonte da sua autoridade e a garantia de sua missão. Claro que você pode basear uma seita em ataques a essa autoridade, por exemplo, atacar a Igreja Católica pelos excessos que cometeu ou a Igreja Anglicana alegando que são lacaios do Estado, mas por esse caminho você não vai constituir uma sólida consistência teológica que inspire a elevação espiritual. É por isso que nós escolhemos voltarmo-nos para dentro, para o fundo da nossa herança doutrinária, e agir e orientar a ação inspirados na meditação sobre ela.
Folha - Julgando por algumas reações da imprensa, dos meios de comunicação e do público, parece que, paradoxalmente, para muita gente é intolerável viver sem a perspectiva iminente do inferno. Como o sr. explicaria isso?
Jennings - É mais um desses casos de pessoas respondendo a diferentes tipos de autoridades de diferentes maneiras. Se algum teólogo precisa induzir um medo aterrorizante da danação para ser ouvido, eu devo dizer que há alguma coisa errada na sua compreensão do amor de Deus. Se ele depende das fornalhas do inferno para ensinar o que é a perdição, equivocou-se por completo. Se no seu ensinamento não houver a contrapartida do amor de Deus, não há como as pessoas viverem o Evangelho como uma comunhão de cordialidade. Assim, gente que precisa acreditar no fogo do inferno errou o alvo no que diz respeito a Deus.

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