São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Chamas do inferno podem se apagar

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é o fim do inferno ainda, mas por certo ele nunca mais será o mesmo. A Comissão de Doutrina do Sínodo Geral da Igreja Anglicana acaba de publicar um documento, denominado "O Mistério da Salvação", destinado a esclarecer e atualizar suas doutrinas relativas à salvação e à danação.
Dentre as 225 páginas do relatório, se destacam a rejeição ao imaginário sádico das chamas e tormentos infernais e a conclusão de que aqueles que rejeitam o amor de Deus, condenam a si próprios à eterna alienação da força divina, ficando reduzidos a um estado de "não-ser total". Ficam preservados assim os conceitos de juízo final e de inferno, mas se dissolvem as imagens tão longa e detalhadamente acalentadas da maior e mais perversa câmara de torturas jamais concebida pela imaginação humana.
Mas, se as imagens se vão, o que é que nos resta do inferno? O fato é que toda a nossa percepção desses abismos sulfurosos sempre dependeu dos apelos sensoriais desenvolvidos ao longo dos séculos por mentes exarcebadas pelos mais vulcânicos fervores punitivos. Dos ícones bizantinos às iluminuras medievais; de Giotto a Signorelli e Michelangelo; de van der Weyden a Hieronimus Bosch e os dois Brueghel; de Gustave Doré a Salvador Dali, o inferno existe em primeiro lugar para os nossos olhos e depois para a nossa imaginação e memórias da dor.
É sabido como os carrascos, medievais e posteriores, no processo de arrancar confissões, primeiro faziam uma longa e vagarosa excursão, rica em explicações didáticas, pelos vários instrumentos de seu ofício, descrevendo calmamente os efeitos deles sobre a carne e os nervos. Em geral bastava.
O inferno foi uma construção complexa. As contribuições vieram das mais disparatadas origens, convergindo para uma fusão que homogeneizou vários mitos.
As fontes mais antigas talvez sejam as relativas à representação do Kigalou na Mesopotâmia, o reino subterrâneo dos mortos, com suas sete muralhas, que em épocas posteriores sofreriam um desdobramento vertical, como o de uma pirâmide invertida, originando a versão dos sete círculos infernais, eventualmente promovidos a nove.
O Hades grego, curiosamente era uma criatura, não um lugar, que regia os abismos tenebrosos onda vagavam os mortos. Já o inferno romano significava literalmente a região inferior, para onde iam as pessoas que morriam depois de enterradas. Nem para os gregos nem para os romanos haviam as conotações do império do mal, das chamas e dos demônios. Essas vieram pela via do masdeísmo persa, difundido pelas correntes esotéricas e gnósticas das religiões dos mistérios e da salvação, que passaram a predominar a partir do período helenístico e pelo Império Romano afora.
As referências ao que foi traduzido como o inferno no Novo Testamento eram dirigidas a algo muito concreto, "Gehenna" literalmente significava "o Vale do Hinnom". Tratava-se de um precipício profundo, a sudoeste de Jerusalém, que se tornara notório porque desde tempos imemoriais ali se praticavam sacrifícios em que crianças eram oferecidas a diferentes divindades, dentre elas Baal, Moloch e Jahwe. Uma prática tão repugnante que o próprio Deus, falando pela voz do profeta Jeremias, abjurou, renegou e proibiu terminantemente, como "algo que eu nunca ordenei, algo que nunca entrou em meus pensamentos". Mais do que uma ironia portanto, foi uma espécie de sintoma psicótico o retorno do reprimido no contexto da doutrina cristã, não como ato, mas como alucinação paranóica.
Foram os poetas sobretudo, Dante para os católicos, Milton para os protestantes, que consolidaram o inferno como o tema trágico por excelência da civilização ocidental. Sua influência se difundiu de um tal modo insidioso e profundo, que pode ser reencontrada em reverberações tão distantes quanto na luta do Capitão Ahab contra Moby Dick, na "Terra Devastada" de Eliot ou nas descrições apocalípticas dos efeitos do imperialismo europeu na África, seladas por Conrad com a proverbial formulação "O horror, o horror, o horror".
Quanto dessa tradição não é necessária para entender a nossa recepção de uma obra tão especificamente referencial como a "Guernica" de Picasso? Em definitivo, o inferno nos pertence, ele é uma categoria ou uma metáfora sem a qual ficamos privados de uma linguagem capaz de articular os transes de que tem sido feita a história.
No relatório "O Mistério da Salvação" da Igreja Anglicana, o que fica claro é que o inferno, por insondável que seja, funciona no limite como a garantia da liberdade com que cada um pode escolher o seu destino. Do contrário estaríamos todos condenados ao paraíso. E nesse sentido ele não está lá ou acolá, mas aqui e agora, dentro de cada um de nós. As palavras do Grande Inquisidor de Dostoievski poderiam ser mudadas e com a mesma força enunciar: "Se o inferno não existe, então tudo é possível".
Há uma nítida homologia entre as profundezas infernais e os subterrâneos da mente humana, em que o torvelinho dos instintos atormenta a alma com as chamas do desejo, o espeto do egoísmo e o clamor da violência. Jean-Paul Sartre inverteu os termos por ironia ao enunciar que "o inferno são os outros". O momento é chegado de repor as coisas onde devidas: o inferno somos nós, ele está em nós e não convém ocultá-lo nem mudá-lo de lugar.

Texto Anterior: A igreja dos subGenius e o bispado virtual
Próximo Texto: A possibilidade de escolher entre o bem e o mal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.