São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Histórias de mistério

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance policial não conta uma história. Ele não segue a ordem dos acontecimentos, mas a ordem da descoberta dos mistérios. Sua essência não está exatamente numa narração, mas numa dedução. Deste modo, o interesse pelo enredo diminui, ou desaparece, em benefício de um sistema de relações, cujo suporte abstrato preside ao processo criador. Pode-se mesmo constatar, na história do gênero, uma evolução que se dirige para o abstrato. A personagens como Rouletabille ou como Sherlock Holmes -que escalam montanhas, viajam sem cessar, sabem se disfarçar de mil maneiras e dependem fortemente de estímulos empíricos- sucedem um Nero Wolf ou um Hercule Poirot, que agem a partir de processos quase exclusivamente mentais.
Nenhum desses detetives, entretanto, por menos empírico, dispensa o que poderíamos chamar de a diversidade do mundo, da qual o mistério depende. Creio ser excessivo pensarmos, como enuncia Roger Caillois num texto fundamental sobre a questão, publicado em "Puissances du Roman", que, no romance policial, o raciocínio elimina a sensação e que as virtudes por ele exigidas possuem qualidade cada vez mais matemática. É certo que estes elementos de engenharia mental estão na base do gênero, mas eles não constituem todo o gênero, caso no qual o romance policial seria apenas uma equação ou uma charada.
Em realidade, o romance policial está vinculado ao mundo, mundo que possui, ele próprio, as suas leis, mas que num dado instante se torna misterioso para que uma explicação subjacente particular possa emergir. Isto é: as razões gerais do mundo são em número infinito, mas elas podem ser configuradas em condições circunscritas, em que o raciocínio se exerce, não fechado em si mesmo, mas numa relação dialógica com o empírico. Deste modo, Sherlock Holmes, nos diz o dr. Watson, ignora que a terra gire em torno do sol: este tipo de conhecimento astronômico não entra nos parâmetros dentro dos quais o crime pode se dar.
Aqui se encontra um dos sentidos fortes do romance policial: o de um gênero que expõe o próprio processo do raciocínio. O grande fascínio está não tanto na descoberta do culpado, como em descobrir a descoberta -ou seja, em conhecer os procedimentos que permitiram a elucidação do mistério. O criminoso é como um mágico que cria ilusões para que nós vejamos apenas aquilo que ele quer. O detetive vem, para nosso maior espanto, desvendar os truques e mostrar uma "verdadeira" situação ao lado da falsa. Trata-se portanto de uma conjuntura muito singular: a de um raciocínio que se mostra enquanto raciocínio e que tem, por obrigação, fundamentar-se para convencer o leitor.
Já aludi ao fato de que estes raciocínios podem ser mais empíricos ou mais abstratos. Ao mostrarem-se em suas estruturas, eles se revelam diversos, de acordo com os detetives, ou melhor, de acordo com os autores. No entanto, eles possuem pontos comuns, em obediência às leis que o próprio gênero estabelece, mas também segundo alguns pontos básicos, anteriores a essas leis. Dentre eles, um principalíssimo: os dados oferecidos à inteligência são fragmentos. Rigorosamente, o pensamento do detetive não pode ser dedutivo antes de ser indutivo. Ele se dispõe diante de uma situação em que alguns indícios começam a fazer sentido e permitem a descoberta de alguma coisa na sua inteireza, que toma forma dentro do próprio pensamento.
Carlo Ginsburg, num ensaio intitulado "Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário" (em "Mitos, Emblemas e Sinais") refaz a genealogia do pensamento detetivesco e vai demonstrar o seu vínculo com a ciência da caça. Antes de apanhá-la, por meio de pistas, o caçador conhece sua presa, sabe para onde foi ou onde se encontra, por meio de uma representação feita no pensamento, construída a partir de sinais parciais e concretos.
O pesquisador sobre a arte já foi comparado ao detetive das histórias policiais. Ele trabalha sobre objetos concretos, ele parte de indícios, ele se instala em um universo perfeitamente circunscrito, ele reconstrói autores por meio de abstrações mentais. O escrito de Ginsburg mostra uma espécie de gênese comum, que se dá quase no mesmo momento, entre os métodos de pesquisa dos detetives policiais, dos historiadores da arte e dos psicanalistas. Holmes, Morelli e Freud seriam produtos de uma disposição do espírito derivada em grande parte da semiótica médica, mas também de procedimentos que envolvem paralelamente disciplinas "indiciárias" modernas como a filologia, a paleontologia, e, evidentemente, a criminologia. O próprio Ginsburg foi precedido e estimulado por um outro texto sobre a questão -a terceira conferência de Edgar Wind, publicada no seu livro intitulado "Arte e Anarquia".
Pode-se perguntar, entretanto, se a relação estabelecida por Wind e desenvolvida por Ginsburg entre Sherlock Holmes e Morelli é inteiramente legítima, por um lado, e se, por outro, ela é suficiente.
É preciso lembrar, antes de tudo, que com Morelli nós estamos entrando numa disciplina auxiliar da história da arte, que é a da atribuição. Panofsky fez, com brevidade, uma distinção entre o historiador da arte e o "connaisseur", em seu ensaio "Problemas de Método", que se encontra no livro "A Obra de Arte e suas Significações": "O 'connaisseur' é o colecionador, conservador de museu ou perito que limita deliberadamente sua contribuição científica a identificar as obras de arte quanto à sua data, sua proveniência e seu autor, a avaliá-las quanto à sua qualidade e ao seu estado de conservação". Trata-se em realidade de uma disciplina não-universitária, que se desenvolveu por caminhos muito vinculados às necessidades do mercado das artes e à concepção moderna de autoria. Concepção que exige, a qualquer custo, encontrar um nome responsável pela obra, nome que justifica a idéia derivada dos românticos de uma individualidade criadora genial, mas que reforça também o valor venal da obra. Todo marchand sabe que a mesma tela terá um preço diferente se for possível ou não atribuir-lhe uma autoria prestigiosa.
Estamos portanto em águas não muito claras. A história da arte deve muito à prática da atribuição, que permitiu chegar a uma grande finura de catálogos. Os grandes atribuidores -de Morelli a Zeri, passando por Berenson e Longhi- contribuíram de modo fundamental para o estabelecimento de corpus pertencentes aos artistas mais importantes. Todos estes especialistas possuem a característica de serem personalidades muito fortes, só incidentalmente ligadas aos meios acadêmicos. Eles têm formação autodidata e são capazes, com frequência, de ódios violentíssimos.
Estes personagens singulares, com vidas repletas de episódios mais ou menos lendários, tornaram-se frequentes a partir do século 19, quando se acentua a força do mercado das artes. Num diálogo extraído do conto "O Cliente Ilustre", que faz parte de "The Case-book of Sherlock Holmes", alguém descreve, para o grande detetive, um terrível criminoso dizendo: "Coleciona livros e quadros. Possui considerável gosto artístico natural. É, creio eu, reconhecida autoridade em porcelana chinesa, tendo escrito um livro sobre o assunto.
- Um espírito complexo, comentou Holmes. Todos os grandes criminosos são assim".
Felizmente, nem todos os "connaisseurs" -ou pelo menos espero- são criminosos. Mas a passagem toca em dois pontos cruciais: a questão do gosto artístico natural e a questão da reconhecida autoridade.
Porque o atribuidor possui, em grande parte, um tipo de conhecimento que se baseia em convicção íntima, dada por um longo contato com as obras de arte. Conhecimento que não se explicita e que pôde ser, desde pelo menos os tempos de Hogarth, nas "Analysis of Beauty", ironizado.
Ora, o grande especialista Morelli, italiano que viveu no século passado, instaura, com seu método, um abalo neste estado de coisas. Encontra-se implícito, nas suas concepções, o desejo de transformar este princípio de autoridade natural num procedimento objetivo. Ele afasta, em primeiro lugar, a idéia de uma cultura literária e exige uma atenção voltada concretamente para as obras. Em seguida desenvolve a idéia básica -cujos paralelos freudianos são evidentes- de que os artistas são imitados nos seus aspectos gerais e importantes: na composição, no colorido, no caminho do traço que forma o contorno e assim por diante. Mas tal imitação negligencia aquilo que é secundário: a forma de uma unha, o lobo da orelha, a cavidade de uma narina, isto é, elementos feitos por meio de uma repetição descuidada pelos grandes pintores, e que, por força, escapam aos imitadores, restauradores ou falsificadores. Como estas partes são as menos expressivas da imagem, tanto o próprio artista quanto o seu imitador não as levam em consideração, e exatamente por isto tornam-se indícios inconfundíveis.
Morelli vai estabelecer então um enorme fichário comparado de orelhas, dedos, unhas, narizes etc. Se, sobre uma tela, encontramos um número de pontos suficientes concordantes, pontos naturalmente extraídos das informações visuais obtidas dos fragmentos catalogados, podemos estar convencidos de que a obra é da mão de tal ou qual mestre.
Morelli procedeu à renovação do catálogo de muitos museus -dentre eles a Galeria de Dresden, coleção ilustríssima por onde passaram todos os neoclássicos e todos os românticos alemães, e onde o próprio Freud descobriu uma sensibilidade para a arte. A "Vênus de Giorgione", hoje um dos quadros mais célebres do Renascimento e um dos mais importantes daquele museu, era tida por uma cópia secundária, feita por Sassoferrato, de um original do Ticiano -é Morelli que lhe encontra o autor e lhe confere o lugar essencial que a obra possui hoje para nós.
Temos aqui alguma coisa em comum com aquele princípio de exposição do raciocínio próprio ao gênero do romance policial, que eu sublinhei no início. Mas esta convergência não é inteiramente legítima. Porque o método de Morelli prevê uma organização que não é a do detetive, mas da polícia. As fotos de detalhes que ele acumulou possuem o caráter de um fichário sistemático semelhante aos métodos científicos da antropometria e, mais, à identificação feita por meio da dactiloscopia. A objetividade que ele pressupunha não era a de um espírito que deduz, mas a da neutralidade de um procedimento infalível.
Em verdade, estes princípios morellianos abalam um dos mais assustadores fundamentos sobre o qual se apóia o personagem de Sherlock Holmes: o de um poder engendrado não apenas por um conjunto excepcional de conhecimentos, mas ainda por uma inteligência única. Caillois pôde dizer: "Não se tardou a notar, com efeito, o caráter arbitrário dos raciocínios de seu personagem (Sherlock Holmes): eles supõem conhecimentos demais e uma infalibilidade anormal".
Esta "infalibilidade anormal" traz a idéia de que nada, nenhuma ação, nenhum estado, nenhum pensamento pode, diante dela, ficar escondido. Todos os leitores de romances policiais lembram-se do momento em que Sherlock e o dr. Watson se conhecem, no livro "Um Estudo em Vermelho". Sem que nada aparentemente o indique, o detetive descobre de imediato que seu futuro comparsa esteve no Afeganistão. Estes procedimentos divinatórios fazem parte da mitologia do detetive e servem para surpreender, de tempos em tempos, de modo divertido, o leitor. Mas eles permitem perceber o pressuposto de um mundo sem segredos para aquela mente superior e de um olhar para o qual nada se oculta.
Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de Sherlock Holmes, rigorosamente, ninguém pode ter segredos e todos revelarão os recessos de uma subjetividade desvendada, porque incapaz de se esconder. É por isso que a mente dos criminosos deve estar na altura do olhar do detetive: eles conseguem, pelo menos durante um certo tempo, a faculdade de ocultar. Mas o olhar do detetive é implacável: Sherlock Holmes/Big Brother possui efetivamente um imenso poder. Poder que emana não de um método, que é secundário, mas de uma inteligência, que é primordial.
Neste sentido, Sherlock é claramente superior à polícia e a seus arquivos, seus sistemas classificatórios, seus métodos, dentro dos quais atuam vários agentes. No primeiro caso, mais vale a inteligência individual. No segundo, são os procedimentos, as técnicas de caráter objetivo que primam.
Ora, é interessante saber que uma das críticas mais fortes formuladas contra Morelli -particularmente por Max Friedlãnder, no seu livro "Da Arte e do Conhecedor", cuja primeira edição é de 1919- não ataca as conclusões, fabulosas, mas coloca em dúvida os métodos proclamados que teriam levado a elas. Não que esses métodos parecessem inúteis a Friedlãnder, mas eles seriam insuficientes para chegar aos resultados espetaculares do italiano. Isto é -Morelli não teria conseguido suas atribuições graças a um método científico, mas graças à sua prodigiosa intuição. O Dr. Watson pode tentar empregar o método de seu grande amigo. Ele não consegue nunca desvendar corretamente os crimes.
Não cabe aqui discutir a procedência das críticas de Friedlãnder. Quero ressaltar apenas uma de suas implicações. Morelli tentava um procedimento capaz de neutralizar esse saber poderoso do "connaisseur", que presta contas apenas a si próprio. Poder efetivamente imenso: ainda hoje, Zeri, diante das câmeras de televisão, lança um olhar diabólico para milhões de espectadores, coloca a mão sobre um bronze do Renascimento ou uma estatueta da Antiguidade e proclama: "Falso!". Não tem que prestar contas a ninguém -sua autoridade, seu vastíssimo conhecimento permitem esse discernimento quase divino. E, quando o perito deve se pronunciar sobre um quadro, afirmando se se trata de um Rafael ou não, de um Caravaggio ou não, de um Van Gogh ou não, ele entra na pele dos grandes gênios, antes, ele se encontra acima dos grandes gênios, que dependem dele, "connaisseur", para serem ou não os autores de tal ou qual obra.
É bem evidente que qualquer tentativa de objetivar um método de atribuição abalaria esse poder formidável dos atribuidores. Os ataques à ciência morelliana e a exaltação de suas qualidades intuitivas, intencionalmente ou não, protegem a natureza quase divina dos "connaisseurs". Trata-se de Sherlock Holmes contra a polícia, e é bem verdade que a tentativa morelliana não teve muita posteridade: os grandes nomes de "connaisseurs" guardam, com ciúmes, os segredos de seus poderes. Vence o detetive e o "connaisseur": eles necessitam de uma polícia incapaz e de um atribuicionismo sem método eficaz para poderem existir.
Se eu retomei aqui esta comparação entre o detetive dos romances e o "connaisseur", foi para levantar alguns pontos a partir da leitura de Wind e, sobretudo, de Ginsburg, que colocam em cena os dois personagens. Isto entretanto, limita injustamente os poderes heurísticos da literatura policial -particularmente no que concerne a história da arte, concebida além do atribuicionismo.
Não é possível agora, mas seria muito bom assinalar o quanto os raciocínios de um Panofsky se assemelham às deduções sherlockianas, ao partirem de algum detalhe estranho, incoerente, para revelarem o sentido oculto de tantas obras. Ou então, mostrar como os raciocínios analógicos de miss Marple encontram um paralelismo nos procedimentos das melhores análises comparadas de excelentes historiadores da arte. Ou como a "frequentação" de um Maigret, que vai se embebendo aos poucos do ambiente do crime, é um excelente exemplo dos procedimentos pacientes, que exigem contato constante com as obras para que, num dado momento, o estalo se produza. Mais do que uma metodologia especializada, esses detetives, na mescla de intuições, raciocínios, subjetividades, inspiram excelentemente o historiador da arte.
Mas seria ainda mais fascinante poder especular sobre as fronteiras pouco claras que existem entre os raciocínios expostos e suas motivações inconfessáveis. Num texto sobre Chesterton, Borges fala em uma guerra, na qual preside e vence a "vontade demoníaca", que ocorre nos inquéritos do padre Brown: "Emblemas dessa guerra são para mim as aventuras do padre Brown, cada uma das quais quer explicar, unicamente diante da razão, um feito inexplicável. (...) Isto é tudo, salvo que a 'razão' a que Chesterton subordinou suas imaginações não era precisamente a razão, mas a fé católica, ou seja, um conjunto de imaginações hebraicas subordinadas a Platão e a Aristóteles". Ou, de outro modo, o historiador da arte deveria lembrar que são tão importantes para os processos dedutivos de Sherlock Holmes tanto o rigor do raciocínio quanto o violino e a cocaína.

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