São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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As hesitações da crítica

MARCELO COELHO

Em "Leituras de Poesia", ensaístas analisam oito autores brasileiros
da Equipe de Articulistas
Este livro reúne oito ensaios sobre poetas brasileiros. João Luiz Lafetá analisa "Paulicéia Desvairada", de Mario de Andrade; Jorge Koshiyama comenta um poema de Manuel Bandeira; Murilo Marcondes de Moura estuda "Aproximação do Terror", de Murilo Mendes; Fábio de Souza Andrade escreve sobre um soneto de Jorge de Lima.
Continuo a lista. Alcides Villaça fala de dois poemas de João Cabral; Benedito Nunes se volta para um fragmento de Mario Faustino; José Miguel Wisnik trata de "Cajuína", de Caetano Veloso, e Alfredo Bosi fecha a coletânea com um soneto de Raimundo Correia.
"Analisa", "comenta", "estuda"... senti certa dificuldade em variar os verbos nos parágrafos acima, para dar conta da atividade exercida pelos autores deste volume. Hoje em dia, a própria palavra "crítica", no sentido de "crítica literária", parece estar entrando em desuso. Prefere-se "leitura", como bem mostra o título desta coletânea.
Ou seja, o problema se concentra mais no ato de "ler" -com o que há de modéstia e de esforço nisso- do que na decadente, arrogante, ultrapassada utilização da palavra "crítica".
Vejo que começo esta resenha com um tom meio antipático, que é injusto não só com a excelente iniciativa editorial de publicar um volume de ensaios sobre poetas, mas também com a alta qualidade de alguns dos textos aqui reunidos.
É que o gênero resenha costuma oscilar entre a reportagem, o resumo, a invectiva e a propaganda. Melhor então, se o termo "crítica" ainda tem algum sentido, problematizar, sem antipatia, e avaliar, com o máximo de simpatia possível, este livro.
Alfredo Bosi, o organizador, escreveu uma introdução aos ensaios deste volume, que é ao mesmo tempo um testemunho equilibrado de sua formação intelectual e uma chave de acesso aos méritos e problemas dos textos.
Ele conta como foi se familiarizando com as principais correntes da teoria literária européia. Há 40 anos, o curso de letras neolatinas da USP começava com Benedetto Croce, e sua distinção radical entre poesia e não-poesia. A primeira, isto é, a poesia, era composta de dois elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima.
Veio depois a esterilidade acadêmica francesa, com suas "explicações de texto": Qual a idéia principal do poema? Quais os recursos utilizados pelo autor para explicitá-la? De que modo ele transmite a idéia... etc. etc...
Enquanto isso, corria nos EUA a invenção do "New Criticism", a nova crítica, que privilegiava idéias como coerência, tensão, ambiguidade, na defesa do que se chamava "close reading", isto é, o "ler de perto" cada poema.
Seguiram-se a estilística de Spitzer, o estruturalismo francês, o formalismo russo, a Escola de Frankfurt, o dialogismo de Bakhtin... e a descoberta de Vico e de Gramsci. Bosi conta o que absorveu e o que rejeitou disso tudo.
E o que faz um crítico brasileiro com isso tudo? Uma alternativa seria adotar um dos métodos propostos, fazer-se militante de uma escola de "leitura". Temos representantes disto no Brasil; não tão disciplinados quanto seria de crer, e na verdade muitíssimo criativos, houve os que se filiaram a um método mais formalista, mais atento às permutações do significante, e os que se filiaram a um método mais sociológico, sensível aos contextos da obra.
Sem descuidar de uma e de outra tendência, Alfredo Bosi mostra, neste texto introdutório, como construiu um caminho pessoal. Mas é espantoso ver que esse caminho pessoal o leva a encontrar um outro teórico europeu! E que teórico! Trata-se de Gaston Bachelard.
Bachelard tentou, dos anos 30 em diante, uma espécie de "filosofia das coisas", se podemos dizer assim, ou, se quisermos falar como ele, uma "psicanálise dos elementos". Elementos mesmo, os quatro: a terra, o fogo, a água, o ar. Valia-se da obra de poetas para evidenciar o conteúdo onírico, o valor inconsciente que atribuímos a esses dados da natureza.
Sua obra teve consequências na crítica literária francesa, de Jean-Pierre Richard a Roland Barthes. Mas foi sempre um esforço, a meu ver, reducionista. Ou seja, tomar o texto literário como "prova" de alguma outra coisa -no caso, a saber, dos devaneios da psiquê. Assim como, na crítica estruturalista, havia o empenho de explicar a literatura por meio de "outra coisa", a saber, os procedimentos básicos da linguagem humana. A este respeito, vale uma consulta a Paul de Man, "Blindness and Insight". Não que eu entenda muito o que ele diz.
Mas voltando a Alfredo Bosi. O que justificaria essa sua adesão à poética dos elementos, à psicanálise material de Bachelard, como método para ler poesia? Há dois fatores em curso, creio eu.
De um lado, Bosi investe numa interpretação dialética do fato literário. Só que os críticos dialéticos de plantão, a partir de Lukács e de Adorno, tratam com duas entidades básicas, a saber, "forma" e "sociedade". A estrutura de uma obra, seu estilo, sua arquitetura, seu tom, entram em jogo com o contexto e com o conteúdo. Estética e ideologia, portanto, contradizem-se e reconciliam-se nessa perspectiva de análise.
Desconfio que essa perspectiva pareça formalista demais para Bosi. O poético bachelardiano serviria para ele como uma âncora no rumo do "verdadeiro", do essencial, do elementar. Ao mesmo tempo em que matéria e espírito, essas duas entidades metafísicas, conhecem uma reconciliação viva e eucarística na obra de Bachelard -donde o apelo que exercem sobre Bosi-, continua aberta, para este, a possibilidade de uma dialética, não mais entre forma e sociedade, mas entre "natureza" e"cultura", o que quer dizer, ocultamente, entre espírito e matéria.
Mas natureza e cultura são termos vagos demais para quem se dispõe a analisar uma obra de arte específica. A análise que Alfredo Bosi faz do soneto "Anoitecer" de Raimundo Correia oscila, assim, entre tomar ao pé da letra as metáforas utilizadas (evidente que crepúsculo = melancolia, por exemplo) e situar historicamente o estilo do autor. Soma-se a isto uma preocupação formalista, pois não foi à toa que o crítico leu estilistas, estruturalistas etc.: versificação e sintaxe não escapam a sua análise.
Como a denunciar a impossibilidade de uma dialética bachelardiana e culturalizante se entendida como estratégia para "ler" poesia... Mas estou ficando antipático de novo.
Creio que os ensaios desta coleção se ressentem, em geral, de falta de método. É como se cada autor, pondo em suspeição tantas doutrinas européias que terminaram se revelando simplesmente modas, apostasse na própria sensibilidade para fazer suas "leituras".
Isso dá grandes resultados. José Miguel Wisnik escreveu a verdadeira jóia deste livro, ao analisar "Cajuína" de Caetano Veloso. Murilo Marcondes de Moura, sobre um poema de Murilo Mendes, sabe qual o momento de entender e qual o momento de não entender um poema. João Luís Lafetá distingue o que é bom e o que é ruim na poesia de Mário de Andrade. Alcides Villaça, comentando João Cabral, cria uma grade de conceitos adequadíssima.
São críticos. Mas é como se houvesse uma "orfandade de método" em toda a coletânea. O que leva a esforços discutíveis, como o de Jorge Koshiyama, tentando usar Aristóteles e Heidegger para estudar Manuel Bandeira, ou do próprio Alfredo Bosi, pensando em Bachelard e no próprio Heidegger: "aberturas do ser", daí por diante. Falta ironia, falta crítica, falta dialética, e há contemplação demais, retórica e afirmação demais, em muitas dessas leituras.

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